Hoje era sexta-feira santa.
“Era” no passado mesmo, porque para mim o dia já acabou. Sou
daquelas que dormem cedo (a não ser que tenha uma maratona Game of Thrones lá
em casa, daí a porra fica séria).
Como foi meu dia? Bom, preparei uma lasanha de abacaxi com
(pasmem) peito de peru defumado, amanheci tendo contatos bem íntimos com meu
marido, trancei meus cabelos, me embebedei com espumante brut (a bosta tinha
graduação alcoólica de 11,5% - não me convidem para suave) e saí cantando “Hello”
da Adele em embromeixon pela casa até que me colocaram na cama. Ah, xinguei meu
gato que está impossível hoje, e meu filho teve sua aula de violão normalmente.
E ouvi junto aos meus filhos as músicas que gostamos. Também estou escrevendo
este monte de palavrões.
-Mas Carol, é um feriado santo!
Não para mim. Eu fiz tudo isto porque eu posso. Dá licença?
Eu posso!
Posso porque fui excomungada. A meu pedido. Não achava justo
ter meu nome sendo mais um número na estatística do Vaticano se não pratico
absolutamente nenhum rito católico em minha vida. E não foi uma questão de
rejeição. Foi uma questão de respeito.
O mesmo respeito que tive quando pedi desculpas a um colega
evangélico num momento de vergonha alheia diante de uma colega
católica/umbandista que ridicularizou o bispo da igreja que ele frequentava.
Também o mesmo respeito que me levou a não comungar numa
missa festiva em comemoração a vinte e cinco anos de vida religiosa de um amigo
de longa data. Eu poderia, não há fiscais para me apontar como excomungada. Mas
porque agir como se nada tivesse acontecido? Eu não era mais a menininha de
sete anos que ele catequizou. Mas ainda somos amigos e os principais valores
que ele me passou não saem do meu comportamento.
O mesmo respeito que me impediu de batizar meus filhos na
igreja católica. Se eles nunca praticariam seus ritos até terem idade de
escolher no que acreditarem, batizá-los seria uma grande mentira, e como o
oitavo mandamento dos cristãos diz para não levantar falso testemunho, e isto
para mim inclui mentir, não mentiria a eles.
Esqueci-me de outra coisa que fiz hoje o dia inteiro. Ovos
de chocolate. Vários. Uns grandes, outros pequenos. Foram mais de um quilo de
chocolate nesta brincadeira. Se vou empanturrar meus filhos? Não (claro que eles
vão ganhar também). Mas o mais importante é que eles fizeram os ovos hoje junto
comigo. Eles vão para doação à ala infantil do Hospital Psiquiátrico São Pedro.
Preferi eu mesma fazê-los e colocar bombons bem macios para evitar riscos de
engasgos. Criança que é criança relaciona Páscoa com chocolate, e embora eu não
acredite muito nesta relação, por que não deixa-las felizes, principalmente
quando são privadas de tantas coisas?
E hoje embora tenha feito tudo que as pessoas evitam fazer
em um feriado santo me pus a lembrar da lotação dantesca do Mercado Público de
Porto Alegre nesta semana em que todo mundo procura peixes caríssimos para
comer (ainda acho que esta história de bacalhau tem relação direta com a
família real portuguesa que chegou aqui em 1808, mas deixa quieto), discute
qual vai ser o prato mais fino e qual o melhor vinho. E claro também, se amontoa
nas filas por seu chocolate. Vejo também cristão se referindo a “comemorar” a
sexta-feira santa. Oi? Tá comemorando o que, filho? A delação premiada mais
famosa da História? Gente, vi até cristão sem saber dizer se no Natal se
comemorava o nascimento de Cristo e na Páscoa a ressurreição!
Vi gente dizendo que desejava a paz mundial, mas estava
ostentando selfies lindas em Gramado. Não que uma pessoa que visita Gramado não
possa desejar a paz mundial; mas se teu desejo é este não deveria estar ajudando
pra que isto aconteça?
Vi gente que passou o ano inteiro dizendo que Jesus era seu
melhor amigo indo pra praia e servindo banquete. Darling. Se ele é teu melhor
amigo, lamento informar, mas hoje é uma data escolhida pelos cristãos para
vivenciar o luto. Neste momento, pelos teus ritos, teu amigo está morto. E tu
lá, de boas na praia? Imagina que maneiro o Samahin pegando e eu
ridicularizando o além-túmulo. Eu hein?
Depois me peguei a lembrar de outro momento. Havia saído de
um ritual de Beltane com minha família e dei lugar no ônibus a um rapaz que
estava com uma bebezinha no colo. Ao me levantar olhei para o fundo do carro e
lá estavam TODOS os bancos ocupados por pessoas com a camiseta da marcha pela
família que havia ocorrido no mesmo dia; e uma moça sentada NO CHÃO (degrau)
com um bebê no colo. Não vou falar mais nada por dois motivos: primeiro que me
embrulha o estômago. Segundo que piada explicada não tem graça.
Daí fico me perguntando que raios aconteceram com os valores
que o cristianismo pregava (Um detalhe infame que pode fazê-los cair para trás,
meus caros amigos cristãos: já estivemos do mesmo lado. Os romanos perseguiam
vocês e nós ao mesmo tempo! E por motivos idênticos.)! Nem filminho de Jesus na
TV aberta tem mais! O sentido das coisas se perdeu totalmente.
Aliás, quer um conselho? Um conselho de amiga, de coração?
Pega as crianças, explica o que Jesus fez na Terra, e depois
assiste “A Última Tentação de Cristo”, do Martin Scorcese (Sou tão gente boaque vou deixar o link aqui). E aí pergunta o que teria mudado se Jesus tivesse
escolhido um caminho diferente. Não vou te mandar ler Stead, Lobo Antunes, Caldwell, Stern e Nunes. Menos
ainda debater a teoria dos laranjas (se quer saber mais daí sim, te aconselho a
procurar pelo Danillo Nunes). Seria maldade demais da minha parte.
Na verdade pensei neste textão o dia inteiro, e estou
acabando ele quando a sexta-feira santa acabou de fato. Daqui há pouco os
cristãos estarão lembrando do momento em que o sepulcro foi encontrado vazio.
Um momento fantástico da mitologia cristã.
Mitologia sim. Eu posso. Se Lugh e Morrighan são ditos na
minha frente como seres mitológicos e devo encarar isto com naturalidade, eu
posso dizer isto. Juro que pelo simples fato de não ser cristã não me importaria nem em trabalhar nos feriados de vocês, desde que pudesse me resguardar nos meus - ah, esqueci, não são feriados! Mas bem que podia, né? - .
E não quer dizer que eu duvide da existência do Deus de
vocês, e menos ainda da do filho dele.
Que a paz esteja entre todos nós. De verdade.