Estava lendo o site Minilua. Lá, uma foto lateral chamou minha atenção. Falava sobre a situação triste de crianças na Ucrânia. Abri o link.
Não vou reproduzir as fotos. Não é este meu intento. Não gosto de sensacionalismo nem profissionalmente, muito menos intimamente. Infelizmente vivemos no que chamamos de "Sociedade do espetáculo". Onde podemos assistir a desgraça alheia, e em um clique após dizer "coitadinho", fugir da realidade.
Há pessoas da minha convivência que se questionam sobre como sobrevivi a certas situações que elas consideram extremas. Mas elas sabem apenas o que contei. Na verdade, nunca vivi nenhuma situação extrema. Caminhei aproximadamente sete quilometros na chuva por não ter como pagar o ônibus, sem proteção nenhuma para fazer a prova do ENEM. Passei, estou prestes a me formar como bolsista. Roubei chuchu na cerca da vizinha para ter o que comer alguns meses antes disso acontecer. Estava amamentando meu filho praticamente desmaiada quando o pai dele chegou em casa. Tenho pressão baixa e chuchu não faz muito bem para pessoas como eu. Sofri violência psicológica, o que resultou em um divórcio. Me reergui do nada, várias vezes. e me reergo de novo, se for necessário.
Isto é o que eles sabem, e já ficam chocadas. E se um dia descobrirem que testemunhei contra um pedófilo ao descobrir que uma menina em uma das creches que eu trabalhei estava sendo abusada? Sim, eu estive frente a frente com ele, e não piquei nenhum pedacinho do seu rosto.
E se descobrirem que ensinei uma menina de treze anos a tomar banho em bacia depois de descobrir que na sua casa não havia água encanada?
Que vesti meu moletom em um menino de seis anos para o qual tive que colocar no colo para dar aula, na intenção de aquecê-lo (Naquele dia voltei com frio para casa, mas a sensação foi única.)?
Que segurei a língua de um menino que estava tendo uma overdose?
Que fui em boca de fumo exigir um aluno meu de volta gritando com o traficante em questão "Nos dias em que eu der aula ele é meu, nos outros ele é teu, e vamos ver quem é que ele escolhe!"? A partir deste dia o homem mandava o menino ir pra escola antes de ir para o "trabalho".
E o dia que fui escoltada pra descer o Morro da Cruz sob fogo cruzado? Cabuloso!
Sabem quanto eu ganhava para sustentar meus filhos neste período? 80 reais por mês, numa época em que o salário mínimo era de 400. O resto, arranjava fazendo uma performance de teatro aqui, outra alí. Não se enganem, meus amigos, artista fora da televisão é pobre.
Não é meu intuito também exibir proezas. Até porque o que contei não é proeza. É apenas minha obrigação. Na verdade a obrigação de todos nós.
Conheço um homem que me contou que muito se molhou na chuva sendo levado pela mão por sua mãe, em condições extremas. Começou a trabalhar aos sete anos, vendendo jornais. Não digo quem é, nem o que faz por respeito, mas posso dizer que hoje está muito, mas muito bem. Chorei ouvindo sua história, porque é muito parecida com a dos meus filhos, que não precisaram trabalhar tão cedo, mas estão aprendendo o valor das coisas comigo. Tenho certeza que este homem não fez o que fez sozinho. Sempre temos alguém que dobre nosso paraquedas. Lembram daquele email que ninguém lê até o final? Pois é, leiam e entenderão. Assim como estenderam a mão para ele, estenderam e estendem para mim; e eu estendo para outro, em gratidão a quem me estendeu.
Estou extremamente chocada com as fotos que vi, retratando o cotidiano dos meninos abandonados na Ucrânia. O que me choca mais ainda é saber a sensação que o fotógrafo deve ter tido. Ele também estava cumprindo sua obrigação como pessoa. Podemos não ter dinheiro, mas miséria vai muito além de não ter dinheiro. A miséria da alma é muito mais assustadora e sedimentada.
Minha mãe é kardescista. Minha família é. Um dia ela me disse que devemos cumprir nossa obrigação com nossos filhos primeiro, e que haviam desgraças que aconteciam com as pessoas por conta de coisas que elas mesmas fizeram. Acredito nisto. Mas assim como ela, acredito que nós todos estamos aprendendo. Consequentemente, se estes pequenos estão aprendendo com a dor, eu estou aprendendo com a indignação por vê-los assim, e ainda mais com a coragem de fazer alguma coisa. Isto é o que dá forças à minha mãe, por exemplo, mesmo cansada, prestar trabalho voluntário também.
Mas é tudo tão complicado. Não é uma doação, nem simplesmente arrastar um menino ucraniano para um abrigo que vai resolver. Nem um prato de comida. Naquelas condições, o corpo não sente fome, nem frio. Talvez nem dor.
Meu Deus! Eles são muito parecidos com meu filho. E podemos sentir todo o sofrimento em suas expressões nas fotografias.
Talvez nem escrever este texto ajude, mas preciso vociferar este tipo de coisa, sabendo que tenho acessos de várias partes do mundo, mesmo que não comentem nada.
Todas as noites agradeço à Deus(a) por ter me dado forças para garantir dignidade aos meus filhos. Poderia ter fraquejado como os pais destes meninos. Existem coisas (boas e ruins), que só podemos explicar com o divino. Quando os vejo deitados em camas limpas, alimentados, e recebendo educação, mesmo que com a dificulade de minha falha presença muitas vezes; só consigo explicar com a presença de um Deus(a) que não é bom. É justo.
Não consigo ver a humanidade como se não fosse uma família gigantesca. Queria poder me multiplicar e segurar cada um deles no colo. Juro. Não tenho por que querer impressionar alguém.
Mas posso pedir um favor: que cada pessoa que ler isso se torne uma extensão dos meus braços. Também imagino que isso não vai dar certo, mas se um atender, já será a margem que as estatísticas prevêem.
Um dia, meus filhos queriam deixar uma lata de refrigerante pela metade em uma calçada para que um mendigo pegasse. Não permiti. Ensinei a eles que se quiserem dar algo a alguém, que fossem ao mercado, comprassem um lanche limpinho e dessem. Isso é dignidade. Ninguém precisa viver de restos.
Pode existir um "menino ucraniano" ao lado da sua casa, sabia? Não é necessário viajar a Ucrânia para fazer algo.
Estes meninos vão desencarnar e ser substituídos, e não falta muito tempo. Se verem as imagens entenderão. Não sabemos onde terão suas próximas chances, então se melhorarmos as condições por aqui, estaremos preparados para recebê-los de braços abertos, caso nos escolham. A vida é feita dos atos de cair e levantar diariamente. É assim com o plano divino, também.
Uma oração? Talvez. Na verdade chamo isso de fé, de amor, de esperança.
Esta foto retrata uma pessoa que foi salva do abandono por um casal em melhores condições que seus pais biológicos.
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