Ontem o dia amanheceu esquisito.
Estava um pouco alheia aos acontecimentos, pois me vesti
apressada para ir ao trabalho e nem assisti o telejornal da manhã como costumo
fazer.
Mas o mais esquisito foi chegar ao jornal Correio do Povo e
ver um colega da editoria de Esportes, que geralmente chega à tarde (jornal que
se preze fervilha à tarde/noite, principalmente a editoria de Esportes) entrando
apressado para dentro do prédio. Senti que algo havia acontecido. Mas não sabia
que era tão, mas tão grave (e dolorido).
Os fatos que se sucederam no dia de ontem dispensam
descrições. Meus colegas que encararam a redação (e por isso às vezes digo que
são mais corajosos que eu) já o fizeram. A perplexidade em saber que a maior
parte das pessoas que nos deixaram são jovens, muito jovens. A revolta em ter
sentido alívio quando encontraram mais um sobrevivente, e este alívio ser
seguido da informação do desencarne de mais um que poderia ter sobrevivido, mas
não conseguiu, mesmo tentando bravamente até o fim. A tristeza em ver um
goleiro de 24 anos perder uma perna, seguida da dualidade empática com a mãe
dele: no lugar dela, preferia ter meu filho de volta, mesmo que sem um pedaço
do seu corpo, e isso me deixou por alguns segundos feliz por ela.
Chegou um momento do dia em que disparei na linha de tempo
de uma rede social do colega que vi pela manhã “Que pesadelo é este”? Não há
outra palavra. Era um pesadelo.
Colegas que perderam colegas, famílias que perderam filhos,
filhos que perderam pais sem nem ter podido olhar seus rostos físicos.
À tarde, participei de uma reunião que durou algumas horas.
E esqueci meu celular na bolsa enquanto isto. Quando saí, havia duas chamadas
perdidas do número dos meus filhos. Foi como se eu entrasse num buraco negro.
Parece trágico pensar que poderia ter sido uma última tentativa de contato?
Talvez. Mas não há como não pensar nisto num dia como ontem. O céu se abriu
quando ouvi a voz do meu primogênito: “a gente ligou pra saber se tava tudo
bem, tu parecia estranha no almoço”. Óbvio. Imaginem como estava minha cara o
dia inteiro, mesmo não trabalhando em cobertura nenhuma.
Nestas horas parece que toda nossa vida passa à nossa
frente, mesmo que a morte não esteja diante de nós. Lembrei de quando decidi
pelo Jornalismo. Pela paixão por zonas de conflito. E de quando meu marido, meu
incentivador e embarcador de todas as minhas canoas (furadas ou não) me
presenteou com a matrícula em um curso que a Polícia Civil dá para jornalistas
que desejem se especializar na função. Lembrei de quando justamente na semana
em que começaria o curso um colega do Rio de Janeiro morreu porque seu colete a
prova de balas estava danificado e não deu conta de um ataque durante uma
cobertura. E então lembrei do meu recuo. E recuei porque naquela hora só
pensava nos meus filhos, no meu marido, nos meus pais. E que poderia ser eu
naquele morro. Foi então que escolhi a Gestão de Comunicação e a Cultura.
Trabalhei minha vida inteira na área cultural e confesso que nem sei se saberia
fazer outra coisa, assim como tem sido minha relação com a Gestão. Acho que
nunca mais conseguiria escrever uma reportagem às cegas sem pensar na parte
administrativa da publicação de meu produto. Então me lembrei de outra
situação. Os colegas franceses (de redação, de gestão, de suporte) que perdemos
há pouco tempo num ato covarde de terrorismo. Eles não estavam em um avião. Nem
em campo de combate, nem em morro. Estavam em suas mesas de trabalho exatamente
como estou todos os dias. E tinham deixado suas famílias em casa para mais um
dia dedicado a informar tantas outras famílias seja através de críticas, seja
através de notícias, seja gerindo uma publicação, mas informar. E lembrei de
novo dos meus colegas, tão próximos no dia de ontem. E que haviam perdidos
colegas, ex-colegas e amigos, mas não abandonaram o posto. Alguém precisava
informar o que estava acontecendo em meio àquele turbilhão. E eles estavam lá,
em pé. Mesmo sabendo da “baixa” de um ex-colega que havia virado amigo (do qual
nunca fui próxima, mas confesso, me choquei ao ver as imagens de seu rosto
jovem entre as vítimas). Não costumo citar nomes, mas se ontem me perguntassem
nomes de heróis eu responderia Carlos Correa, Tiago Medida (por serem mais
próximos a mim) e os tantos outros que trabalharam incansavelmente ao mesmo
tempo em que sentiam a perda.
Porém, depois de tudo isto, o que me importou de fato (e não
tenho vergonha de assumir-me egoísta) foi chegar em casa, tomar um chimarrão
com meu marido na praça e ver meus filhos correndo. Voltar, cozinhar o
Yakissoba de legumes que eles tanto gostam e depois de ter chorado assistindo
os (também colegas) jornalistas do Jornal Nacional homenageando os seus contar
para meus filhos sobre o dia em que recuei da Redação. E que hoje sei, não me
adiantaria de nada.
Eles precisavam ouvir que a mãe deles recuou não por
covardia, mas por eles. Não ouviram isto para que se sentissem culpados por
terem interrompido os sonhos de uma jovem jornalista. Mas ouviram para que
soubessem da importância deles, aconteça o que acontecer, já que estamos em tempos
tão estranhos:
- Escolhi minha família.
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