Ontem à noite, estive em uma festa de aniversário de uma
querida amiga, cigana, que recebeu ciganos e gadjos em seu lar. Um clima
agradável, uma energia boa, risos. Momentos ótimos compartilhados com amigos.
Mulheres ciganas e não ciganas dançavam livremente (Confesso
que fiquei mais ao lado dos cantores que das dançarinas, porque comecei a ter
uma grande cólica – Mioma. Uma praga. –. Daí também me dei por conta de que
minha mania de fazer de tudo um pouco pode ser vantajosa às vezes.).
Ao voltar para casa, lembrei que hoje era o primeiro dia de
aula da minha filha. Que está em uma escola separada do irmão, homem e mais
velho. E lembrei também que no ano passado um menino que gosta de se meter a
valentão com as meninas, especificadamente com as meninas, ameaçou “arrastar a
cara dela no asfalto” se ela dirigisse o olhar a ele novamente. Também lembrei
que ela peitou o menino, e com as palavras dela, se escorou na mesa dele e
disse: “Olha aqui, fulano. Não sei qual é o teu problema. Mas a gente tá aqui
pra estudar, e não pra ficar se ameaçando. Eu queria ser tua amiga, mas pelo
jeito tu não quer. Então tu me deixa em paz e eu te deixo em paz. E se tu não
fizer isso, vou chamar minha mãe. E se ela tiver que resolver do jeito dela, tu
não vai gostar”. A mãe. Ela ia chamar a mãe. Com um irmão e um padrasto em
casa, ela resolveu avisar ao menino que a mãe dela daria um jeito. E sim, eu
daria. E sim, eu sei que ele não ia gostar, porque meu jeito ia ser dado junto
à mãe dele, e não com ele.
Mesmo assim, chamei minha filha no meu quarto. Ela ainda
vestia as roupas “super femininas” que usamos em nossas festas. Uma volumosa
saia amarela e uma blusa com babados. Os cabelos adornados com uma rosa amarela
presa ao lado da cabeça.
Só que no dia a dia, minha filha usa um piercing de septo
falso (ela tem 11 anos), batom preto, vermelho, roxo, azul, o que ela quiser,
pois usa batom rosa e vestidinho de renda com tiara de florzinhas também. Posso
afirmar que ela é uma pequena mulher empoderada esteja em um âmbito mais
tradicional, ou em qualquer lugar, cada lugar do seu jeito. Para mim, poder de
verdade é tu conseguir transitar em todos os meios e ser respeitada em todos
eles do mesmo jeito. O problema é que a decisão de empoderamento dela foi
minha. Talvez não seja problema. Conduzo de uma maneira muito realista. Quer
usar shortinho? Vai acontecer isso e aquilo. Vivemos numa sociedade doentia,
mas não podemos nos tornar doentes por isso. Só tem que ter força para encarar
os fatos. Hoje é arriscado o simples fato de sair na rua, sejamos mulheres ou
homens, com short ou burca a ameaça vai ser a mesma. Quer frequentar ume festa
numa comunidade que tem hábitos milenares? Vai respeitar os hábitos milenares,
pois tu não gostaria que desrespeitassem tua casa. E era isso.
Mas nossa conversa não foi exatamente sobre isso. Foi sobre
ser educada com as pessoas. Se perguntarem seu nome, responda. Se te derem bom
dia, responda. Se te mandarem a merda, responda se te ofendeu, mas não precisa
alterar o tom de voz. A vontade era de dizer para ela enfiar a mão na cara de
alguém, mas não posso. Já expliquei que isso deve ser feito apenas em situações
extremas de agressão.
Porém, fico me perguntando o que seria uma situação extrema
de agressão. Físico/corporal? Ora, convenhamos. Já estamos cansados de saber
que não é só isso.
Aí depois de todo este turbilhão na minha cabeça, chega a
pérola do meu marido: “Sabe cara de paisagem? Tu tem que fazer cara de
paisagem. Faz de conta que não está ali. Não é ignorar. É parecer que não está
ali”. Então era esta a solução? Ser invisível? Como uma menina que ouve há 11
anos que não devemos ser apenas mais uma pessoa no mundo, que devemos lutar
pelos nosso espaços e objetivos de vida vai ficar invisível?
Estava muito cansada para dizer alguma coisa. Na verdade,
confesso que na maioria das vezes não sei o que dizer. Digo muita coisa, mas
sempre sem a certeza de estar correta. Que bom seria se tivesse um manual de
instrução para a vida. Principalmente para criar uma mulher. Um dia me disseram
que era mais fácil para mim lidar com minha filha do que com meu filho, afinal
era mulher também. Nunca ri tanto de uma piada.
A questão é que fomos dormir e a segunda-feira amanheceu. E
com ela o pesadelo de saber que minha filha iria para uma escola onde passa a
manhã inteira ao lado de um indivíduo de 13 anos (repetente) ameaçador.
Sozinha, sem o irmão (homem e mais velho, lembram?), que em tese poderia defende-la.
Mas ok. Meu marido levou-a até a escola e me ligou, colocando-a a falar comigo,
para confirmar que estava tudo bem.
Foi depois disto que minha mente deu um nó. Vesti uma saia
longa, uma blusa comum com rendas nos ombros. E fui para o trabalho. Meu marido
sempre me acompanha no trecho, e eu sempre questiono o comportamento dele, pois
sempre afirmo que sei me cuidar sozinha, ainda mais em um trecho que três
quadras.
Eis então que caminhando sozinha, aleatoriamente olhei para
um homem que estava sentado em um degrau, tomando um copo de café. Ele me olha
e diz: “que coisinha linda”. O cérebro é algo muito, mas muito rápido, e meu
começou a fazer perguntas enquanto eu dava apenas um passo:
- Será que na cabeça dele isso é um elogio?
- Será que na cabeça dele este ato é um direito dele, por
ser apenas um objeto?
- Porque isso não acontece quando meu marido está junto?
- Volto e chuto o café na cara dele, aproveitando que ele
está bem na altura do meu joelho?
- Grito um desaforo?
- Respondo que sou grande demais para ser chamada de
coisinha?
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