Não apenas sobre o Santander.
Mas sobre Cultura, Arte e o verdadeiro motivo de sua existência.
Quando falamos em Cultura não
estamos falando apenas em Arte. Estamos falando em “todos os produtos
comportamentais, espirituais e materiais da vida social humana” (TYLOR, 1877). Porém,
não temos como falar em Cultura sem falar em várias formas de Arte, uma vez que
é através dela que o homem, desde sua pré-história, representa seu cotidiano.
Gravem bem estas últimas palavras.
O primeiro homem coloriu a
primeira parede de caverna com as mãos sujas, representou ali suas digitais.
Quando foi seguido por contemporâneos que aperfeiçoaram sua técnica e passaram
a ilustrar figuras de animais sendo caçados por grupos de homens, podemos
observar que a partir dali foi-se criando um padrão, uma normatividade. Ou seja,
passou a tornar-se normal homens usarem lanças ou armadilhas para aprisionar
seu alimento, pois através de gravuras podiam observar que tribos assim o
fizeram e havia dado certo. Também houve aqueles que enrolando argilas com as
mãos criavam falos para que fossem “cultuados”. Afinal, sem o falo não haveria
reprodução, embora muitas tribos ainda acreditassem que a fêmea engravidasse
quando deitada sob a lua. Quando tiveram acesso aos falos de argila entenderam
a mensagem: os filhotes vinham da relação sexual regular. Aos poucos foram
entendendo que a relação entre heterossexuais garantia a sobrevivência da
espécie. E repetiram este padrão, até constituírem família. Também refletindo
sobre as caçadas registradas nas paredes, tiveram a ideia de começar um
trabalho de pecuária. Quão arriscado era sair correndo com uma lança atrás de
um mamute, enquanto sua família o esperava? Nada além do produto da reflexão
sobre os registros de um cotidiano primitivo.
A Arte sempre foi religiosa e não
religiosa também. Durante a Idade Antiga vemos representações de ritos, mas
vemos representações de cotidiano também. Ao mesmo tempo em que vemos Deuses
egípcios pintados em paredes de pirâmides, vemos também calendários e
descrições de colheitas. Vemos na Grécia Deuses que mostram o padrão de corpo
belo para a sociedade grega, e vemos também afrescos mostrando festas,
esportes, contos. Vemos escritos em alfabetos que ainda passariam por muitas
mudanças a escrita de músicas, mitos, lendas, poemas. Todos registros de como
as diversas civilizações em ebulição se comportavam. Qual cidade nunca quis ser
modelo em educação como Atenas, ou modelo bélico como Esparta? Sem estes registros
não iria querer, não haveria tal conhecimento. Aqui abrimos um parêntese: “Entre
nós reviva Atenas para assombro dos tiranos. Sejamos gregos na Glória e na
virtude romanos”. Isto lembra alguém? Pois aqui começa nossa jornada.
A bela arte greco-romana foi
contraventora. Quando? Quando aqueles que deram continuidade à organização
social entenderam que o corpo humano era algo pecaminoso. Não estamos aqui
falando da Idade Média de maneira pejorativa. Isto é História. Houve proibições,
condenações, mas houve também registro artístico. Um registro adverso ao
anterior, mas havia. Um período em que a figura humana podia ser retratada,
desde que sem movimento, sem forma realista, sem perspectiva angulosa e de
profundidade, tudo afim de evitar a visualização de vergonhas, pois isto
poderia estimular o espírito pecador humano. Como estudamos (aqueles que
estudaram a respeito), podemos observar que de nada isto adiantou. O espírito
pecador continuava vivo. Assim como o espírito da ignorância, da privação, da miséria.
Mesmo com uma arte manipulada para dizer apenas o que os mais fortes queriam
tornar padrão entre os mais fracos, para que seus feudos continuassem organizados
à sua maneira, o comportamento humano continuava humano. Mesmo com
perseguições, o comportamento humano continuava humano. Os pênis continuavam
existindo, as vaginas continuavam existindo, felações continuavam existindo, a
pedofilia (infelizmente) já existia e continuou existindo, a zoofilia
(infelizmente) já existia e continuou existindo, o incesto já existia e
continuou existindo. Até mesmo outras religiões já existiam, e continuaram
existindo. Mesmo com uma arte que passava por uma censura muito mais rigorosa
que em qualquer outro tempo o comportamento humano continuava existindo.
Inclusive entre aqueles que mantinham o poder em suas mãos.
Até o dia em que Giotto começou a
humanizar seu trabalho e foi seguido por outros artistas que vieram
gradativamente ressuscitando as belas artes greco-romanas.
Quem não admira as obras dos
quatro maiores artistas do Renascimento? Que belos quadros, afrescos,
esculturas, murais nos deixaram! Tudo isto contraventor. Tudo isto foi um
escândalo. As transparências nas roupas, as formas, a luz, a perspectiva, o provável
sêmen que Michelangelo usava em suas tintas para garantir fixação. Estudavam cadáveres
às escondidas, temerosos de uma perseguição implacável. Neste período podemos
ver a ascenção dos retratos. Quase sempre manipulados. Pois como nem sempre o
retratado podia ser um exemplo do que era belo, um Photoshop manual era ali
aplicado e estava resolvido o problema, mantendo assim cabeças sobre pescoços e
a pele longe do fogo. Mas isso sim é bonito. Mesmo assim, através destas obres
podemos conhecer a vaidade humana, um comportamento em voga na época.
A Arte não retrata absolutamente
nada que não exista. Mesmo que seja um sonho de Frida Kahlo. Existe. É um
sonho. Que seja um relógio liquefeito (talvez nossa modernidade líquida, como
Bauman chama) de Dalí. Existe. Ainda é um relógio. Que seja o Minotauro de
Picasso. Minotauros podem não existir, mas o mito existe. Seria um ato de
zoofilia grego o que gerou o mito, e que até Monteiro Lobato recontou para
crianças?
Partindo deste pressuposto, se
substituirmos ovos e galinhas por arte e comportamento a pergunta se torna bem
mais simples de responder. Uma vez que a arte reproduz algo que já existe,
seria mesmo possível que a arte “incitasse” algum comportamento?
Ou estamos diante novamente do
comportamento humano que prevê a acusação de um terceiro quando a culpa é
minha? Sempre precisamos de uma “bengala” para nos apoiarmos em alguma
contravenção.
Estamos diante de uma sociedade
em que toda vez que a frase “a Arte não é moral nem imoral, mas amoral” de
Oscar Wilde é citada, tal citação tem que ser obrigatoriamente acompanhada de
explicações profundas sobre linguagem. E podem acreditar: o papel da Arte é ser puramente amoral, para que assim possa incomodar, tirar o expectador de sua zona de conforto. Este é um conceito que aprendemos no ensino fundamental, nas primeiras aulas de Educação Artística. Mas talvez não tenhamos prestado atenção, pois jogávamos um gouache qualquer no papel para termos nota e presença no final do trimestre, e entregávamos nas mãos do professor "tri louco" que nunca era levado a sério.
Sejamos sensatos. O problema
nunca será o artista. Será a sociedade que ele retrata.
Por que ao contrário de
condenarmos um artista, como se tudo o que ele retrata fosse fantasia dele,
criada exclusivamente por ele para manipular uma sociedade já adoecida; não criamos debates em torno
do que ele retrata, e encontramos assim soluções para que estes elementos não
precisem mais ser retratados? Por que não entendemos a arte como um manifesto,
como uma ferramenta de reflexão? Seria mais confortável continuarmos então com
o ufanismo de Ary Barroso e seu país perfeito (isso era real?).
Um museu fechou uma exposição. Estão quase todos satisfeitos. As crianças que se prostituem nas estradas
continuam ali. Os animais subjugados por seu “proprietários” continuam ali. Os
religiosos (sejam cristãos ou não) que usam de uma moralidade criada para
subjugar alguém seja social ou sexualmente continuam ali. Mas a exposição está
fechada, e nossas crianças continuam tendo nojo do próprio corpo enquanto fazem
suas descobertas (abusadoras ou abusadas) escondidos atrás do muro da escola,
pois falar sobre o assunto é feio. Grande vitória de nossa sociedade. A exposição fechou. Viva!
Agora, falando em primeira
pessoa: Podem acreditar, eu não gostei de escrever isso. E nem toquei no assunto de classificação indicativa, que proporcionaria aos pais e responsáveis por menores de idade o exercício do livre arbítrio em levar ou não sua família a um ambiente artisticamente contraventor (Porque sim, se é um direito do artista retratar, é um direito do expectador não assistir.). Queria mesmo escrever
sobre uma sociedade onde todos são dignos e se respeitam. Em que todas as obras
de arte são belas. Tão belas quanto os panfletos que recebemos na rua, onde
crianças brincam com tigres em um campo verdejante sob um céu com arco-íris,
enquanto seu pais sorriem para elas. Mas artista que sou antes de qualquer
outra coisa que eu seja, precisava escrever sobre o que existe. Sinto muito, de
coração.
Caroline Garcia – Atriz, Jornalista, Pós Graduanda em Gestão Cultural.
 |
Imagem: Tadeu Vilani/Agência RBS |