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segunda-feira, 5 de maio de 2014

Ave Sonora - Parte I

"Ave não chora pois se agora somos só dois
Vai ver depois seremos mil
Ave não chora que sem demora
Em um segundo conquista o mundo nosso assobio"
                                         João Chagas Leite - Músico Gaúcho




- Te acalma, mãe, ninguém vai ler a minha mente. – Acabou com uma conversa nervosa com a mãe, que questionava a amizade da moça com alguns estudantes cabeludos e barbudos.

- Minha filha, tu sabe que mulher que pensa demais incomoda.

- Isso era o que a vó pensava, e agora tá lá, morta e enterrada no cemitério da Santa Casa, sem ter sido nem feliz com a vida medíocre que ela levava com o vô.

A mãe apenas balançou a cabeça e voltou a lavar a louça.

Clara vivia entre rixas e discussões com a jovem senhora que há pouco ficara viúva de um marido autoritário como o próprio pai era. Por isso a menina começara a fumar escondida embaixo do porão, onde ouvia as músicas de Chico Buarque sem risco algum. O mesmo porão onde descobrira o sexo com seu amigo Otávio, em uma noite quente de verão, enquanto os pais estavam de férias em Cidreira. Nunca mais tocaram no assunto, mas ela parecia ainda sentir o cheiro daquele momento vivo em suas narinas, toda vez que lembrava.

- Sabe, mãe, não quero acabar que nem tu, com a barriga na frente de uma pia, lavando louça. – Comeu mais uma mordida de pão.- Quero viver minha vida do meu jeito. E não tem mal nenhum dizer o que a gente pensa.

Enxaguou a xícara em que estava tomando café, fazendo a mãe chegar um pouco para o lado. Beijou a testa da mulher rápida e automaticamente despedindo-se, estava indo trabalhar.

O caminho era sempre o mesmo.

Passava pelo centro da cidade com o jornal embaixo do braço, sob a roupa.

Clara não era de se intimidar. Caminhava com passos apressados como se fosse apenas mais uma trabalhadora do comércio na região. Mas tinha algo que a diferenciava dos outros. Algo muito peculiar: a coragem de pensar, mesmo que não fosse permitido.

O dia estava um pouco nublado, era fim de abril. Vestida com um casaco comprido, porém leve, que batia com a barra nos joelhos dela, Clara estava aquecida o suficiente para não sentir nenhum desconforto, e de certa forma até admirava a beleza morta das árvores da capital em um dia de outono. Seu porte pequeno dera o apelido com o qual Otávio se referia a ela: “a Baixinha isso, a Baixinha aquilo”. E ela nem era baixinha. Ele é que era alto, segundo ela mesma dizia para se defender. Tinha os cabelos volumosos, com uma cor melada, cacheados quase crespos, que prendia com uma faixa na altura da testa, sempre com cores que combinassem com sua roupa. Eram compridos e cobriam metade de suas costas.

Próxima ao muro que separava a avenida do rio que alguns estudantes afirmavam de pés juntos que era um lago (O que não fazia diferença nenhuma para Clara, pois para ela rios ou lagos são todos depósitos de água; e água é sempre água.), ela atravessou a rua. Caminhava pelo costado de um prédio amarelo, com uma grande porta fechada, próximo ao Banco. Foi então que sentiu um leve toque de mão em seu ombro esquerdo.

Olhou para trás. Era um homem estranho. Usava óculos escuros e tinha uma barba cerrada, com cara de poucos amigos.

O mesmo fez um sinal com a cabeça indicando a rua ao lado. Não podia se opor. Estava sozinha com o homem, e as pessoas chegavam muito aos poucos para trabalhar. Indo pela rua oposta à direção do mercado onde trabalhava, Clara parecia tensa, e o homem não saía de seu lado.

Depois dos minutos de silêncio mórbido que acompanhara a caminhada dos dois até a porta pela qual ele indicou que entrasse, ela viu que um casal caminhava próximo a eles.

- Meu nome é Ana Clara Fonseca de Moraes! – Clara gritou o mais alto que pode, chamando a atenção dos dois. - É vinte e um de abril de mil novescentos e setenta e cinco! Trabalho no...

E ia continuar gritando informações sobre si, se o homem não a tivesse empurrado para dentro.

- Espertinha, hein? Não vai adiantar de nada, tu sabe disso. – Ele tinha um sorriso sarcástico.

O homem a conduziu por um longo corredor, entrou em uma saleta, a colocou com força sentada em uma cadeira. Enfiou a mão dentro de sua roupa e de lá arrancou o exemplar do jornal que carregava todos os dias. Jogou na mesa. Outro homem, um pouco mais velho que aquele pegou o exemplar e admirou a capa.

- Interessada em saber sobre a vida do nosso presidente, menininha? – O homem era irônico. – Ou mais interessada em xerocar essa pôrra e distribuir na faculdade?

- Eu não sei do que o senhor está...

- Cala a boca que quem fala aqui sou eu! – Ele bateu na mesa. – Todos sabem que esta é uma pergunta retórica. Tanto estudo pra nada... não tem medo?

- Não tenho do que ter medo.

- Eu penso o contrário...

Aquela manhã seria igual a qualquer outra, não fosse o soco no nariz que fez a visão de Clara escurecer e tudo se apagar.