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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Escolhi minha família

Ontem o dia amanheceu esquisito.

Estava um pouco alheia aos acontecimentos, pois me vesti apressada para ir ao trabalho e nem assisti o telejornal da manhã como costumo fazer.

Mas o mais esquisito foi chegar ao jornal Correio do Povo e ver um colega da editoria de Esportes, que geralmente chega à tarde (jornal que se preze fervilha à tarde/noite, principalmente a editoria de Esportes) entrando apressado para dentro do prédio. Senti que algo havia acontecido. Mas não sabia que era tão, mas tão grave (e dolorido).

Os fatos que se sucederam no dia de ontem dispensam descrições. Meus colegas que encararam a redação (e por isso às vezes digo que são mais corajosos que eu) já o fizeram. A perplexidade em saber que a maior parte das pessoas que nos deixaram são jovens, muito jovens. A revolta em ter sentido alívio quando encontraram mais um sobrevivente, e este alívio ser seguido da informação do desencarne de mais um que poderia ter sobrevivido, mas não conseguiu, mesmo tentando bravamente até o fim. A tristeza em ver um goleiro de 24 anos perder uma perna, seguida da dualidade empática com a mãe dele: no lugar dela, preferia ter meu filho de volta, mesmo que sem um pedaço do seu corpo, e isso me deixou por alguns segundos feliz por ela.

Chegou um momento do dia em que disparei na linha de tempo de uma rede social do colega que vi pela manhã “Que pesadelo é este”? Não há outra palavra. Era um pesadelo.

Colegas que perderam colegas, famílias que perderam filhos, filhos que perderam pais sem nem ter podido olhar seus rostos físicos.

À tarde, participei de uma reunião que durou algumas horas. E esqueci meu celular na bolsa enquanto isto. Quando saí, havia duas chamadas perdidas do número dos meus filhos. Foi como se eu entrasse num buraco negro. Parece trágico pensar que poderia ter sido uma última tentativa de contato? Talvez. Mas não há como não pensar nisto num dia como ontem. O céu se abriu quando ouvi a voz do meu primogênito: “a gente ligou pra saber se tava tudo bem, tu parecia estranha no almoço”. Óbvio. Imaginem como estava minha cara o dia inteiro, mesmo não trabalhando em cobertura nenhuma.

Nestas horas parece que toda nossa vida passa à nossa frente, mesmo que a morte não esteja diante de nós. Lembrei de quando decidi pelo Jornalismo. Pela paixão por zonas de conflito. E de quando meu marido, meu incentivador e embarcador de todas as minhas canoas (furadas ou não) me presenteou com a matrícula em um curso que a Polícia Civil dá para jornalistas que desejem se especializar na função. Lembrei de quando justamente na semana em que começaria o curso um colega do Rio de Janeiro morreu porque seu colete a prova de balas estava danificado e não deu conta de um ataque durante uma cobertura. E então lembrei do meu recuo. E recuei porque naquela hora só pensava nos meus filhos, no meu marido, nos meus pais. E que poderia ser eu naquele morro. Foi então que escolhi a Gestão de Comunicação e a Cultura. Trabalhei minha vida inteira na área cultural e confesso que nem sei se saberia fazer outra coisa, assim como tem sido minha relação com a Gestão. Acho que nunca mais conseguiria escrever uma reportagem às cegas sem pensar na parte administrativa da publicação de meu produto. Então me lembrei de outra situação. Os colegas franceses (de redação, de gestão, de suporte) que perdemos há pouco tempo num ato covarde de terrorismo. Eles não estavam em um avião. Nem em campo de combate, nem em morro. Estavam em suas mesas de trabalho exatamente como estou todos os dias. E tinham deixado suas famílias em casa para mais um dia dedicado a informar tantas outras famílias seja através de críticas, seja através de notícias, seja gerindo uma publicação, mas informar. E lembrei de novo dos meus colegas, tão próximos no dia de ontem. E que haviam perdidos colegas, ex-colegas e amigos, mas não abandonaram o posto. Alguém precisava informar o que estava acontecendo em meio àquele turbilhão. E eles estavam lá, em pé. Mesmo sabendo da “baixa” de um ex-colega que havia virado amigo (do qual nunca fui próxima, mas confesso, me choquei ao ver as imagens de seu rosto jovem entre as vítimas). Não costumo citar nomes, mas se ontem me perguntassem nomes de heróis eu responderia Carlos Correa, Tiago Medida (por serem mais próximos a mim) e os tantos outros que trabalharam incansavelmente ao mesmo tempo em que sentiam a perda.

Porém, depois de tudo isto, o que me importou de fato (e não tenho vergonha de assumir-me egoísta) foi chegar em casa, tomar um chimarrão com meu marido na praça e ver meus filhos correndo. Voltar, cozinhar o Yakissoba de legumes que eles tanto gostam e depois de ter chorado assistindo os (também colegas) jornalistas do Jornal Nacional homenageando os seus contar para meus filhos sobre o dia em que recuei da Redação. E que hoje sei, não me adiantaria de nada.

Eles precisavam ouvir que a mãe deles recuou não por covardia, mas por eles. Não ouviram isto para que se sentissem culpados por terem interrompido os sonhos de uma jovem jornalista. Mas ouviram para que soubessem da importância deles, aconteça o que acontecer, já que estamos em tempos tão estranhos:
- Escolhi minha família.

Esta foto que ilustrou a capa do Correio do Povo de hoje foi feita pela equipe da Rádio Caracol, Colômbia. Uma imagem simples, isolada e triste, filtrada pelas lentes de quem  teve que ver este momento num todo, com a força de quem está trabalhando. Lembre disto quando falar em sensasionalismo e leviandade.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Era uma vez O Sul



- Pois tu sabes que até agora não caiu a ficha?

- Então, já era sabido que a crise do impresso tinha chegado naquelas paragens.

- É... Há que se adequar.

- Mercado maldito este!

- Mas criatura, este mercado não vai acabar. Lembra daquela frase clichê: “a comunicação nunca vai acabar... ela só vai mudar de plataforma”? É assim. Tem que virar multimídia, e...

- Ah, eu vou morrer de fome! Mal sei programar uma câmera digital doméstica!

- Então, cara! Vai fazer um curso, estudar.

- Estudar? Tu acha mesmo que eu preciso estudar? Minha escola é a vida, meu filho! É a estrada. Há quantos anos tu achas que eu reporto daqui da minha cadeirinha? Não tenho mais condições de fazer estas loucuras! Tempos bons aqueles que a gente perseguia bandido e vinha correndo pra redação bater os dedos na Olivetti. Uma lauda, um cigarro, uma lauda, um cigarro. Depois era o bar da esquina e um monte de cerveja. Bons tempos.

- Mas as pessoas não querem mais saber o que já aconteceu! Eles querem saber o que acontece na hora!

- Que escutem rádio.

- Tu estás andando em looping.

- Todos nós estamos. Vamos todos ficar desempregados mesmo, com esta enxurrada de crianças que pensam que sabem escrever só porque recebem um monte de curtidas e coments. Uma verdadeira vergonha!

(...)

- Ainda não caiu a ficha.

- Que ficha, rapaz? Nem vai cair! Isto é um absurdo! Onde já se viu? Depois estamos todos com nariz de palhaço gritando nas ruas e ninguém sabe por que! Pouca vergonha! Acham que podem se livrar assim da gente?

- E eu me peguei pensando nos impressores...

- Ah, eles que vão trabalhar numa gráfica!


-Oi?





terça-feira, 7 de abril de 2015

Dizem que hoje é dia do Jornalista



Hoje, dizem que é dia do Jornalista.

Na verdade, vivo este dia todos os dias.

Assim como em todas as profissões, nos comprometemos antes com o mundo, para depois nos comprometermos com si mesmos.

E como isto é gigantesco, às vezes assustador.

Existem pessoas que pensam que existimos apenas em matérias assinadas em folhetins pela TV, Rádio, Televisão. Que existimos quando damos nosso "boa noite", ou quando anunciamos "notícia de última hora", ou ainda quando escrevemos aquela coluna apimentada na página de opinião. Ledo engano. Existimos nas madrugadas, nas ameaças de quem quer fazer algo escondido, nos momentos em que as imagens são tão fortes e intoleráveis que nos prestamos a vê-las primeiro e proteger nosso expectador de um possível choque.

Existimos também fora das redações, garantindo que seja lá qual for a informação que o expectador queira receber; que ela seja recebida de maneira eficaz, digna e ágil. E não é trabalho fácil.

Existimos formando outros Jornalistas. Pois aquilo que se faz primordialmente necessário para a sociedade precisa de continuidade.

Há algum tempo temos ultrapassado as linhas do romantismo e não nos afixamos em uma mesa com nossos cigarros, café, máquina de escrever: dividimo-nos entre a vastidão da informação, nossas famílias, nossos desejos, nossa saúde. E como a tarefa de mantermos nossa saúde tem sido cada vez mais árdua! Como a linha entre a perda da nossa humanidade, da nossa compaixão, do nosso respeito aos nossos anseios e o caráter de nosso compromisso é tênue!

Mesmo que não estejamos em alguma área de risco fazendo uma cobertura, ficamos com o coração apertado nas mãos esperando nossos colegas voltarem da Faixa de Gaza, do Morro do Alemão, das manifestações populares do Brasil. E fazemos o possível para dar suporte para que ele se mantenha vivo e cumpra a sagrada missão de informar. E é com quase incuportável dor e sensação de impotência que acompanhamos quando temos uma baixa em nossas equipes. Mesmo que esta baixa tenha ocorrido em outra emissora, outro grupo de comunicação, ou outro país. Mesmo que seja um único colega que tenha sofrido com a falha em um colete a prova de balas. Mesmo que tenha sido um único colega atingido por uma bomba pelas costas. Mesmo que tenha sido um único colega torturado por um grupo de intolerantes. Mesmo que tenha sido uma redação inteira vitimada por um atentado. Dependemos um do outro diariamente; e mesmo que não nos falemos ou não nos conhecemos pessoalmente erguemos nossos lápis muitas vezes quebrados e informamos o que acoteceu, numa incansável tentativa de evitar uma lamentável repetição dos fatos.

Pensamos em conteúdo, pensamos em educação, pensamos em cultura, pensamos na verdade acima de tudo (mesmo que precisemos ouvir cada lado dela, mesmo que intragável).

Fizemos um juramento no dia em que tomamos a decisão de nos doarmos desta forma. Que o mundo permita que ele possa ser cumprido todos os dias. Mesmo com todas as dificuldades. Com toda a honra e amor a que nos propomos.

“Juro / exercer a função de jornalista / assumindo o compromisso / com a verdade e a informação. / Atuarei dentro dos princípios universais/ de justiça e democracia,/ garantindo principalmente / o direito do cidadão à informação. / Buscarei o aprimoramento / das relações humanas e sociais,/ através da crítica e análise da sociedade,/ visando um futuro/ mais digno e mais justo/ para todos os cidadãos brasileiros./ Assim eu Juro”.

Assim eu juro. E juramentos para mim são vitalícios, quando não possivelmente eternos.

Feliz dia do Jornalista.