Os
seis meses que se seguiram foram de preocupação na casa de Franz.
-
Olhe aqui, menino! – Dona Isolda repreendia Franz como se ele tivesse cinco anos.
– Eu conheço esta cara! E não adianta se encolher aí no canto da mesa! Quando
vem pedir para tomar chocolate quente na cozinha, no meio da manhã, enquanto preparo o almoço; é porque o problema é
do grosso! Pode ir abrindo esta boca!
-
Mas eu não tenho nada para dizer, Dona Is...
-
Franz! – A velha cozinheira curvou-se, quase encostando o nariz no dele. – É o
dono da casa, agora, mas lembre de que até papinha dei na sua boca, quando
desmamou! Portanto, estes seus quase dois metros de altura não me intimidam! O
problema é com a menina Elka, não é? Esta menina está cada vez mais estranha...
Agora deu em querer comer só no quarto, e pede o dobro de comida. Como é que
continua tão magrinha? Você tem é que parar de ir todos os dias para a fábrica.
Já enriqueceu o suficiente. Fique sabendo que seu pai ia apenas duas vezes por
semana para não deixar sua mãe sozinha. Está achando que suas panelas de inox
são mais importantes do que aquela mocinha que a cada dia fica mais pálida
dentro do seu quarto? E ajeite estes ombros para falar comigo, Franz!
- Mas
é que com a guerra...
-
Guerra? Às favas com a guerra! – Dona Isolda falava com a liberdade de quem
havia terminado de criar Franz após a morte de seus pais no naufrágio de um
cruzeiro, quando ele tinha em torno de dez anos de idade. – se quer vender mais
panelas, mande seus operários venderem mais panelas, ou contrate mais pessoal,
não sei. Mas deve dar mais atenção... – E de repente mudou a fisionomia e
ergueu uma colher de pau apontando-a para ele. – Franz! Não está por um acaso
fabricando balas de fuzil ao invés de panelas, está? Você sabe que seu pai
não gostaria que participasse da guerra!
-
Não... eu...
-
Ah, bom! Em todo caso, deve dar mais atenção à sua família... – A velha mudou
de expressão de novo, baixando a colher. – Família! É isto! Deve providenciar
uma criança para correr pela casa! Elka e você não são mais adolescentes! Tem
que providenciar logo um filho. Quem sabe até ela não fique mais alegrinha,
e...
E
Franz esperou que Dona Isolda se voltasse novamente ao fogão e saiu
cautelosamente; deixando-a falando sozinha.
Ela
mal sabia que Franz não podia arredar pé da metalúrgica que ela chamava de
“fábrica de panelas”. A guerra fazia com que ele não pudesse importar metal, e
muito menos exportar os objetos que fabricava.
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A
rotina de Elka tornara-se sistemática. Subia no sótão pelo menos três vezes ao
dia, levando comida, água, e até livros para Jacob. Nunca havia se aproximado
tanto assim do amigo do marido descobria um homem inteligente e delicado nos
gestos e na educação. Havia vezes em que deixava almofadas amontoadas em sua
cama para que quem visse acreditasse estar ali deitada. Assim, poderia passar
horas conversando com o amigo.
Elogiava
o “hóspede” judeu para Franz, que nos primeiros dias concordava efusivamente,
mas com o passar do tempo, apenas acenava com a cabeça, conversando com ela
apenas o trivial.
Observando
a distância do marido e percebendo que eram cada vez mais raras as vezes em que
a procurava na cama, Elka foi ter com Dona Isolda, que muito entendia da vida.
-
Filhos, menina. Acho que apenas um moleque para correr de calças curtas e fazer
barulho nesta casa pode salvar o casamento de vocês. – Disse a senhora, sem
parar de sovar a massa cheirosa de seus biscoitos de Natal, rescendendo a noz
moscada e cravo.
Elka
agradeceu decepcionada, e foi ter com Jacob.
-
Realmente... – ele parecia reflexivo. – É estranho vocês serem casados a tanto
tempo e não terem filhos. Já foram a um médico? Claro, não quero assustá-la, é
só por precaução. E creio que isto faria Franz muito feliz, ele sempre gostou
muito de crianças.
A mulher desceu do sótão e correu ao telefone.
Pediu à telefonista que ligasse para o médico da família. Marcou a consulta e
foi para seu quarto.
A
saudade de Franz era muita. Sentia falta do cheiro, do toque, do gosto dos
beijos do marido. Não conseguia entender o que estava acontecendo; sempre foram
apaixonados e viviam uma vida íntima intensa e feliz. Chegou a se perguntar se
seriam ciúmes dela com Jacob. Era no mínimo estranho. Não conteve as lágrimas,
e deitou-se na cama, sobre o travesseiro dele. Talvez sentir o cheiro ali,
talvez a marca de seu corpo no colchão amenizaria a dor de passar as noites que
ficavam cada vez mais frias ao lado de alguém que se deitava de costas para
ela. Acariciava o colchão como se Franz ali estivesse. Foi quando sentiu uma
ponta de papel saindo do forro entre os lastros da cama. Puxou. Era uma folha
de papel dobrada em três partes. Abriu. Era uma carta:
“Meu querido.
Não imagina o quanto tem
sido difícil manter o silêncio com o passar dos anos.
Chego a sentir sua pele alva
tocando em meu corpo, seus cabelos dourados repousando suas preocupações em meu
peito.
Como queria poder gritar,
como queria poder viver este amor... como te desejo noite e dia! Como queria
que soubesses.
Com amor.”
Um tremor subiu pelo corpo de Elka.
Estava tudo claro. Franz tinha outra mulher na rua! O pranto aumentou mais
ainda. Sentiu vontade de sair correndo, de ir até a metalúrgica e fazer um
escândalo. Mas não foi. Era uma dama da alta sociedade alemã, respeitada pela
sua altivez e elegância.
Logo lembrou então da amizade com
Jacob. Com certeza ele deveria saber até quem era a sirigaita. Mas não pediria
ajuda. Deixe estar que fiquem rindo-se dela pelas costas! Mais cedo ou mais
tarde, Franz veria que não valeu a pena; que ela sim, era uma mulher feita para
ele.
Guardou a carta no mesmo lugar e preparou-se para ir ao salão de beleza.
Tinha um homem para reconquistar.
Esta ilustração é uma releitura de Vincent Noir, e chama-se "Woman in the rain". Só que onde estava disponibilizada não dizia quem pintou. Não consegui entender a assinatura. Se alguém souber, por gentileza me informe nos comentários para que eu possa editar e colocar a informação correta.