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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A Terceira Carta - parte IV

       
O brilho de diamante nos olhos de Elka agora não passava de reflexos opacos de cerâmica. Diante dos outros, Franz continuava o mesmo marido gentil e apaixonado. Entre quatro paredes, silêncio e pudor. Se antes Franz raramente a tocava como mulher, agora era nunca.
            Decidira que daquela noite não passaria. Ou Franz a notaria, ou ela voltaria à casa de sua mãe. Vestiu apenas um longo robe de seda vermelha que revelava as formas de seu corpo. Maquiou-se, penteou os cabelos que sem as presilhas pareciam sempre esvoaçantes.
            Franz entrou quarto adentro afrouxando a gravata e tirando o paletó. Elka praticamente saltou sobre ele. O homem parecia assustado, mas não a empurrou. Ela conseguiu coloca-lo na cama. Montou sobre ele e abriu o robe. O pingente de diamante movia-se entre os seios palpitantes com o arfar de sua respiração. Franz arregalou os olhos:
            - Elka, o que é isto? Enlouqueceu?
            - Enlouqueci! Não aguento mais! Quero saber o que está acontecendo! O que é Franz? Não sou mais atraente para você? Olhe para mim! Olhe... O corpo que você sempre desejou... O colo quente que o recebia nos invernos passados... – Pegou as mãos dele e colocou sobre sua virilha. – Aquilo que chamava de caminho do paraíso. Vê? Está aqui exatamente como tem deixado, com o frio do inverno tomando conta. Como é que vai ignorar uma mulher como eu, que sempre deu tudo o que queria, que foi sua companheira até hoje?
            - Elka, entenda...
            - Não, Franz! Eu não vou entender mais nada! – E saiu de cima dele, dando de mão na carta. – A única coisa que entendo é isto aqui! Sabe o que é isto, querido? Sabe de onde vem?
            E leu a carta em voz alta, fazendo trejeitos de coquete enquanto Franz sentava lentamente na beirada da cama.
            - O que ela tem que eu não tenho? – Elka beirava a histeria. – É vulgar o suficiente para tentar um homem casado? Se houvesse me avisado, “meu bem”, eu teria sido vulgar como tanto gosta! É uma prostituta? Pois se quisesse, me borrava com meus batons vermelhos e pararia seu carro em uma esquina... Não me custaria realizar suas fantasias! – Aos poucos foi baixando seu tom de voz e ficou com os olhos úmidos e parados. – Já sei... Ela não é seca. Todos diziam que nos faltava um filho. E o doutor Johan já me esclareceu. Sou seca. Não posso nem te dar filhos... Não te contei porque pensei que na esperança de tentar engravidar-me não pararia de ter-me como mulher. Diga-me, Franz... Ela lhe deu algum filho? Ou sabe-se lá o que mais ela pode dar que eu não posso?
            E caiu de joelhos, chorando copiosamente, seminua, descabelada e com a maquiagem borrada.
            - Isto tudo é ridículo... – Foram as palavras que Franz balbuciou antes de sair do quarto.

            Elka passou a noite deitada no tapete do quarto, chorando, porém, decidindo como iria bater à porta da casa da mãe. O que diria não sabia, mas ia mesmo assim. Não podia aceitar tamanha humilhação, mesmo desconfiando que seu pai a acharia inútil por não poder dar-lhe um neto ariano.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A Terceira Carta - parte III

Os seis meses que se seguiram foram de preocupação na casa de Franz.
- Olhe aqui, menino! – Dona Isolda repreendia Franz como se ele tivesse cinco anos. – Eu conheço esta cara! E não adianta se encolher aí no canto da mesa! Quando vem pedir para tomar chocolate quente na cozinha, no meio da manhã, enquanto preparo o almoço; é porque o problema é do grosso! Pode ir abrindo esta boca!
- Mas eu não tenho nada para dizer, Dona Is...
- Franz! – A velha cozinheira curvou-se, quase encostando o nariz no dele. – É o dono da casa, agora, mas lembre de que até papinha dei na sua boca, quando desmamou! Portanto, estes seus quase dois metros de altura não me intimidam! O problema é com a menina Elka, não é? Esta menina está cada vez mais estranha... Agora deu em querer comer só no quarto, e pede o dobro de comida. Como é que continua tão magrinha? Você tem é que parar de ir todos os dias para a fábrica. Já enriqueceu o suficiente. Fique sabendo que seu pai ia apenas duas vezes por semana para não deixar sua mãe sozinha. Está achando que suas panelas de inox são mais importantes do que aquela mocinha que a cada dia fica mais pálida dentro do seu quarto? E ajeite estes ombros para falar comigo, Franz!
- Mas é que com a guerra...
- Guerra? Às favas com a guerra! – Dona Isolda falava com a liberdade de quem havia terminado de criar Franz após a morte de seus pais no naufrágio de um cruzeiro, quando ele tinha em torno de dez anos de idade. – se quer vender mais panelas, mande seus operários venderem mais panelas, ou contrate mais pessoal, não sei. Mas deve dar mais atenção... – E de repente mudou a fisionomia e ergueu uma colher de pau apontando-a para ele. – Franz! Não está por um acaso fabricando balas de fuzil ao invés de panelas, está? Você sabe que seu pai não gostaria que participasse da guerra!
- Não... eu...
- Ah, bom! Em todo caso, deve dar mais atenção à sua família... – A velha mudou de expressão de novo, baixando a colher. – Família! É isto! Deve providenciar uma criança para correr pela casa! Elka e você não são mais adolescentes! Tem que providenciar logo um filho. Quem sabe até ela não fique mais alegrinha, e...
E Franz esperou que Dona Isolda se voltasse novamente ao fogão e saiu cautelosamente; deixando-a falando sozinha.
Ela mal sabia que Franz não podia arredar pé da metalúrgica que ela chamava de “fábrica de panelas”. A guerra fazia com que ele não pudesse importar metal, e muito menos exportar os objetos que fabricava.
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A rotina de Elka tornara-se sistemática. Subia no sótão pelo menos três vezes ao dia, levando comida, água, e até livros para Jacob. Nunca havia se aproximado tanto assim do amigo do marido descobria um homem inteligente e delicado nos gestos e na educação. Havia vezes em que deixava almofadas amontoadas em sua cama para que quem visse acreditasse estar ali deitada. Assim, poderia passar horas conversando com o amigo.
Elogiava o “hóspede” judeu para Franz, que nos primeiros dias concordava efusivamente, mas com o passar do tempo, apenas acenava com a cabeça, conversando com ela apenas o trivial.
Observando a distância do marido e percebendo que eram cada vez mais raras as vezes em que a procurava na cama, Elka foi ter com Dona Isolda, que muito entendia da vida.
- Filhos, menina. Acho que apenas um moleque para correr de calças curtas e fazer barulho nesta casa pode salvar o casamento de vocês. – Disse a senhora, sem parar de sovar a massa cheirosa de seus biscoitos de Natal, rescendendo a noz moscada e cravo.
Elka agradeceu decepcionada, e foi ter com Jacob.
- Realmente... – ele parecia reflexivo. – É estranho vocês serem casados a tanto tempo e não terem filhos. Já foram a um médico? Claro, não quero assustá-la, é só por precaução. E creio que isto faria Franz muito feliz, ele sempre gostou muito de crianças.
 A mulher desceu do sótão e correu ao telefone. Pediu à telefonista que ligasse para o médico da família. Marcou a consulta e foi para seu quarto.
A saudade de Franz era muita. Sentia falta do cheiro, do toque, do gosto dos beijos do marido. Não conseguia entender o que estava acontecendo; sempre foram apaixonados e viviam uma vida íntima intensa e feliz. Chegou a se perguntar se seriam ciúmes dela com Jacob. Era no mínimo estranho. Não conteve as lágrimas, e deitou-se na cama, sobre o travesseiro dele. Talvez sentir o cheiro ali, talvez a marca de seu corpo no colchão amenizaria a dor de passar as noites que ficavam cada vez mais frias ao lado de alguém que se deitava de costas para ela. Acariciava o colchão como se Franz ali estivesse. Foi quando sentiu uma ponta de papel saindo do forro entre os lastros da cama. Puxou. Era uma folha de papel dobrada em três partes. Abriu. Era uma carta:
“Meu querido.
Não imagina o quanto tem sido difícil manter o silêncio com o passar dos anos.
Chego a sentir sua pele alva tocando em meu corpo, seus cabelos dourados repousando suas preocupações em meu peito.
Como queria poder gritar, como queria poder viver este amor... como te desejo noite e dia! Como queria que soubesses.
Com amor.”

          Um tremor subiu pelo corpo de Elka. Estava tudo claro. Franz tinha outra mulher na rua! O pranto aumentou mais ainda. Sentiu vontade de sair correndo, de ir até a metalúrgica e fazer um escândalo. Mas não foi. Era uma dama da alta sociedade alemã, respeitada pela sua altivez e elegância.

          Logo lembrou então da amizade com Jacob. Com certeza ele deveria saber até quem era a sirigaita. Mas não pediria ajuda. Deixe estar que fiquem rindo-se dela pelas costas! Mais cedo ou mais tarde, Franz veria que não valeu a pena; que ela sim, era uma mulher feita para ele. 
         Guardou a carta no mesmo lugar e preparou-se para ir ao salão de beleza. Tinha um homem para reconquistar.

Esta ilustração é uma releitura de Vincent Noir, e chama-se "Woman in the rain". Só que onde estava disponibilizada não dizia quem pintou. Não consegui entender a assinatura. Se alguém souber, por gentileza me informe nos comentários para que eu possa editar e colocar a informação correta.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A Terceira Carta - parte II

Vindo de Franz, é claro que o seu jantar de aniversário de casamento não resultaria apenas em um grupo de pessoas comendo e bebendo ao redor de uma mesa. Admirava as danças de salão, desde as valsas até as polcas, passando pelas marchinhas nativas da Bavária; e por isso, contratou um grupo de músicos para promover um pequeno baile no hall de visitas. Na última dança daquela noite, já madrugada, Jacob “roubou” Elka de Franz e fez as sais de seu vestido rodado farfalharem em meio aos risos de uma polca bem marcada e rápida.
Os convidados foram embora, no salão vazio, sob um lustre de cristal, Franz envolveu a cintura da esposa com as mãos e beijou-a nos lábios tão longamente, que ela sentiu como se o calor do verão subisse dos seus pés até o colo. Franz ergueu-a em seus braços e levou-a escada acima, até o quarto.
- Meu amor... Preciso tomar um banho, colocar uma camisola... – Sussurrou Elka, enquanto ele abria seu vestido e a deitava na cama.
- Não precisa. Quero você assim, como é... Como está. – Ele admirava o corpo nu dela ornamentado apenas com o colar de diamante.
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O relógio despertava para o verão de 1936. Elka espreguiçou-se e sentou encostada na cabeceira da cama. Levou um susto ao abrir os olhos e ver Franz sentado aos seus pés, muito sério.
- Querido... Há quanto tempo está aí?
- Não sei... Talvez a uma meia hora... – Franz passou os dedos entre os próprios cabelos e suspirou. – Elka... Perdoe pela pressa, mas poderia me acompanhar até o sótão?
Elka chegou a dar um sorriso, mas percebeu não se tratar de uma das costumeiras surpresas de Franz, tamanho era o peso da sua expressão e logo ficou séria também.
- Posso pelo menos vestir-me?
- Coloque o robe. Temos um pouco de pressa.
Ela obedeceu. Acompanhou o marido que a levava pela mão. Entraram no sótão. Estranhou que Franz não tenha pegado a lamparina que geralmente ficava na entrada: já estava acesa ao fundo do cômodo. Refletida pela luz tênue, a silhueta de Jacob, sentado em uma cama improvisada no chão.
- Jacob? Mas o que... – E Elka foi interrompida pela mão de Franz sobre seus lábios.
- Não fale alto. Ninguém pode saber que ele está aqui. Nem os empregados.

A mulher aproximou-se lentamente do amigo e percebeu o que estava acontecendo. Jacob chorava assustado. Sentou-se ao seu lado e o abraçou, sem perguntar mais nada. Franz envolveu-os com seus braços. Agora os três eram cúmplices dos maiores crimes que poderiam ter cometido: ela, o de voltar seus olhos apenas ao seu pequeno mundo de luxo inocentemente sem saber que um dia esta cena viria a acontecer; Franz, o de acreditar que todos eram iguais e podiam ser amigos; e Jacob, o de ter nascido judeu.

Esta imagem estava disponibilizada pelo Google. Caso saibam o autor, me informem nos comentários para que eu possa editar o post dando os devidos créditos.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

A Terceira Carta - parte I

- Mas olhe que beleza, os olhos desta menina parecem dois pequenos diamantes refletindo o azul do céu! – Dizia a avó enquanto a pegava no colo, durante a infância.
Porém, o que Elka via agora era um diamante de verdade, que reluzia o reflexo azul da camisa do joalheiro por trás da vitrine. Olhar para aquela pedra era como olhar os próprios olhos em um espelho.
- Gostou deste, querida? – O marido colocava as duas grandes e alvas mãos sobre seus ombros, beijando-lhe o rosto.
- É lindo, mas... – Elka estava receosa, o pingente valia tantos Reichsmark quanto podia ter gastado durante seus trinta anos de idade.
- Jacob! Pode embrulhar para presente! – O marido sorriu para o joalheiro. – E com uma fita verde escuro, que é a cor favorita da minha Elka, por favor.
Realmente a maior parte das roupas de Elka era verde.
Franz era do tipo de homem que intimidava aos outros pelo tamanho. Tinha ombros largos, era alto, com mãos e pés grandes. Porém, isso não fazia dele um homem desengonçado. Pelo contrário. Chegava a ser objeto de cobiça das amigas de Elka na adolescência. Mas seus grandes olhos verdes voltavam-se apenas para ela. E neste dia, a olhava com a mesma ternura de sempre (ternura, aliás, que fazia parte de cada gesto de Franz para com Elka, desde o amanhecer até o anoitecer); e o pingente de diamante em questão era seu presente no aniversário de dez anos de casamento.
- Parabéns Elka, é uma ótima escolha... Diamantes são eternos, assim como desejo que seja o casamento de vocês. – Disse Jacob retirando a joia do mostruário.
Jacob e Franz haviam sido criados juntos, pois a família do primeiro atendia a do segundo desde que seu avô abriu uma joalheria em Nuremberg. Ao contrário de Franz, Jacob era franzino e moreno, talvez por causa da sua descendência judia.
- E então, Jacob, vai ao jantar em nossa casa, não vai? Enviei o convite a duas semanas! – Se havia algo que Franz valorizava mais que sua fortuna em dinheiro eram as pessoas que considerava amigas.
- E acha que vou perder os comes da Dona Isolda? Será às sete das noite, não? Pois às seis e meia já estarei tocando sua campainha!
Os dois amigos riram como riam em sua infância, quando o pai de Jacob ia atender o pai de Franz a domicílio e os dois meninos sumiam pelos corredores de casa que Jacob chamava de mansão, correndo com os cavalinhos de pau de Franz, ou ainda jogando bola. A brincadeira sempre era interrompida pela voz da cozinheira Isolda, na época uma jovem robusta que colocava meio corpo para fora da cozinha, chamando-os para o lanche da tarde.
- Pode até chegar mais cedo, mas não sei se Isolda ainda tem idade para cozinhar a quantidade que você come! – Gracejou Franz.
Elka acenou timidamente com a cabeça para Jacob e acompanhou o marido até a rua. A manhã estava nublada. O motorista estacionou o Airflow bordô em frente à loja e Franz fez-lhe um sinal. Queria ele mesmo abrir a porta para a esposa. Pegou a mão dela, beijou-a, assim como a testa encimada pelos cabelos que caiam em ondas douradas semi-presas de um lado da cabeça por delicados grampos.

Retirei esta imagem do site Kboing, está entre wallpapers. Se encontrarem créditos, por gentileza, me informem nos comentários, para que possa editar e informar o autor.




sábado, 18 de janeiro de 2014

Mais de um, menos de dois...

Ser o que se é preciso 
Ser a metade, ou ser o inteiro, não se sabe.
Tenho uma menina dentro de mim que não resiste a sacudir as folhas de uma árvore que pegou chuva para molhar quem anda ao meu lado.
Tenho a mulher que repreende os filhos.
Tenho a menina que chora de tristeza quando sente-se injustiçada.
Tenho a mulher que habita o imaginário masculino.
Gosto de batom vermelho por que lembra a cor do sangue que corre quente em minhas veias.
Gosto de andar descalça na grama, para sentir o arrepio da cócega nos pés.
Gosto das minhas mãos, pois é com elas que posso acariciar o rosto de quem amo.
Gosto de política, pois sei que ela é construtiva se praticada em sua essência.
Gosto de interpretrar personagens que sejam mais terríveis que eu própria.
Gosto de minhas unhas escuras porque contrastam com a brancura das minhas mãos... assim como as pessoas têm contrastes entre uma e outra.
Gosto de admirar e aprender com as crianças: elas são um universo a parte.
Gosto de ser espontânea a cada dia que passa.
Gosto de estar cada vez mais próxima dos trinta (não leve a mal, seis anos passam voando!).
Gosto de Saramago, e seu evangelho com sotaque lusitano.
Gosto de ser pagã, pois temos uma consciência maior sobre nós mesmos.
Gosto de tentar me sentir inteira, embora sempre pela metade.
Gosto do fato de não me importar com a distância de oceanos (posso aprender a nadar tão rápido quanto aprendi a ler...).
Gosto das "dores de cotovelo"... elas me avisam que estou viva.
Gosto quando alguém percebe que estou enamorada, mesmo que ainda não seja por ele (e os amores vão e vem...coitado daquele que deixou a oportunidade passar...perdeu a "orkidea" que não quis plantar...).
Gosto de pessoas teimosas.

Originalmente publicado no site Recanto das Letras , em 25/08/2008. E os seis anos já se passaram... gosto dos meus trinta.



Aprendendo a ser mãe I

Eu já fui mãe de muita gente.

Já interpretei uma mãe que de tão ruim, mandou chamar o veterinário quando seu filho adotivo adoecera num espetáculo chamado “O Menino Diferente” (Fontes Produções, 2003). Já interpretei uma mãe excessivamente preocupada, em “O Menino do Dedo Verde” (Fontes Produções, 2009). Já interpretei até uma mãe de 105 anos, que era os olhos que tudo viam em uma fazenda nos tempos de escravidão em “Allahu-Akbar” (Fontes Produções, 2002). Já interpretei uma matrona açoriana, chegando em Itapuã no século XVIII com filhos e netos (Fontes Produções, 2003). Já interpretei a mãe de um padre que foi possuída por demônios em “A Casa das Sombras” (Fontes Produções, 2005/6). Já interpretei uma mãe caipira, bonachona e histérica em “O Casamento na Roça” (Cia. do Riso, 2004). Sabem que eu já interpretei até a mais famosa das mães? Em uma fase mais despreocupada, Maria paria o menino Jesus em um Auto de Natal (Fontes Produções, 2004). Em uma fase muito mais pesada e dolorida, Maria assistia à crucificação do mesmo menino Jesus já crescido em uma Paixão de Cristo (Fontes Produções, 2006).

De todas estas mães, poderia retirar duas conclusões: a primeira é “Nossa! Trabalhei um bom tempo com esta tal Fontes Produções!”. A segunda é a de que poderia ter aprendido a ser mãe antes mesmo de ter meus filhos de verdade, já que um nasceu em 2004 e o outro em 2005.

É muito engraçada esta relação que tenho com meus ex-colegas de teatro (pois faz mais de 6 anos que não coloco os pés em um palco): lembro do rosto de cada um deles e de como me olhavam nestes períodos. Embora fossem todos “marmanjos” e “marmanjas” (Uma das atrizes que trabalhou comigo “conseguiu” ser minha filha em três espetáculos diferentes! E dois outros atores eram homens com mais de 1,90m e voz bem grave, imaginem...), lembro exatamente de como cada um deles me chamou de mãe.

Lembro também do que mais me marcou. Quando interpretei Maria na Paixão, Mel Gibson havia lançado há um ano a sua versão da história. E foi na Maria criada e dirigida por ele que me apoiei. E como foi difícil! Assisti ao filme com meu filho mais velho em meu colo, pois ele havia acordado no meio da noite em que eu estava fazendo um laboratório, e eu havia o feito dormir novamente. Quando vi Maria enxergando no homem que carregava a cruz o mesmo menino que caía e “ralava” o joelho, e se dando conta de que agora não poderia ajudá-lo a levantar do chão, chorei por um bom tempo olhando para meu filho. Entendi que por mais que cresçam, os filhos continuam sendo os mesmos meninos e meninas para nós, mães. Já havia ouvido muitas mães falarem isto, mas até ali, não havia vivenciado. E não adianta: há coisas que só entendemos vivenciando. Quando o espetáculo acabava, não íamos até a ressurreição. A última cena era a retirada do corpo da cruz e a entrega dele em meu colo. Estava sentada no chão, amparada por outros personagens. Deitavam meu colega em meu colo e eu enchia seu rosto de beijos. Beijos desesperados de uma mãe que não conseguiu “juntar” seu filho quando ele caiu. A cortina fechava e ficávamos ainda um bom tempo abraçados chorando. Foi uma experiência muito forte.

Não sei exatamente o que dela ficou em mim. Às vezes acredito que tenha sido uma boa dose de desespero. Talvez uma ansiedade muito grande. A ânsia de impedir que um filho venha a cair, para que eu não precise passar pela experiência de não poder juntá-lo.

Talvez minha preocupação seja justamente por saber que todas as mães, e provavelmente eu também, em algum momento não conseguem juntar seus filhos, e as caídas são inevitáveis. Nem minha própria mãe conseguiu: quando tive que levantar de meu maior tombo, o fiz sozinha. De certa forma, penso que um dia terei que me conformar com isso.


Mas isto dói. E como.


As duas fotos da Pietá de Michelângelo que coloquei na postagem extraí do Google. Não sei quem são os autores. Se alguém souber, peço que por gentileza me informe nos comentários, para que eu possa editar a postagem com as informações de autoria.