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domingo, 29 de maio de 2016

Ninguém merece

Crônicas da vida real:

Choque. O filho contou que havia pedido desculpas às colegas, pois havia “mexido” com elas. Que havia se dirigido à diretoria da escola para se retratar e pedir orientação de como agir, agora que tinha feito bobagem e não sabia como recuperar a confiança dos colegas.

- Entendo. Mas foram os professores que te chamaram?

- Não, mãe. Foi a Julia*. Vi que ela estava falando grosso e muito brava comigo. Dessa daí eu entendo bem a linguagem: ela estava muito furiosa. Daí me flagrei que tinha algo errado e fui procurar ajuda.

Agora, depois do acontecimento dos trinta e três do Rio de Janeiro, novas discussões surgiram nos lares, e a compreensão sobre receios de que durmam fora de casa, ou saiam para festas de desconhecidos finalmente parece estar sendo entendido.

E a mãe se viu no quarto sozinha com o menino que havia pedido ajuda na direção da escola:

- Mãe, menino não é estuprado?

- Sim, meu filho. Homens e mulheres podem fazer estas coisas contra alguém e sofrer este tipo de violência também.

- Ah. Eu sei como se estupra um menino. Não que eu tenha feito ou participado de uma coisa destas, mas eu sei.

- Entendeu então das coisas que eu temo?

- Sim. Mas fico pensando: se um cara vier pra cima de mim, consigo me defender. Mas se forem dois, não vou poder fazer nada.

(Imagina trinta e três, meu filho...)

- Esta é a parte mais triste. “Não poder fazer nada”. Homens parecem passar menos por este tipo de violência ou não denunciam, o que atrapalha a estatística. Por isto, a consciência que nós temos é de que mulheres passam muito mais por violência sexual do que homens.

- Ô, mãe. Tem uma menina lá na escola que está me provocando.

- Como assim?

- Ela fica rebolando na minha frente, “sentando até o chão” e depois empinando a bunda na minha cara. Daí eu peço licença para acompanhar a lição, e ela debocha gritando para as outras meninas que eu estou me controlando, como se isso fosse errado.

- E tu falou para a diretora?

- Sim. Ela anotou o nome da menina lá no caderno dela.

- Meu filho, se tu precisar que eu vá na escola conversar com a diretora, pode me pedir que eu dou um jeito.

- Não. A professora Manuela* sabe bem ajeitar as coisas... mas se não adiantar te chamo sim.

- Quero que tu entenda uma coisa muito séria: para  respeitar e proteger uma pessoa, não adianta esperar ela dizer não e parar de fazer o que se está fazendo. Vão haver situações em que tu vai te ver sozinho com uma menina e vocês estarão fazendo coisas que talvez ela não queira mais. É só parar também. Mas vão haver situações também, em que ela vai te pedir para fazer coisas que tu sabe que vão machucar ela, se não naquela hora, depois. E aí é teu papel saber dizer não também. Por mais que seja difícil. O namorado daquela moça do Rio de Janeiro estava com ela naquele dia. Dizem que ela se drogou, ou bebeu, não sei ao certo. E que convidava aqueles homens a “se servirem”. Não sei se isto é verdade. Mas se for. Tu não acha que teria sido bem diferente se o rapaz tivesse a mandado tomar um banho e um café forte pra recobrar a consciência ao invés de abusar da situação? Isto também é proteção e respeito.

******

Toda mulher já foi abusada de alguma forma.

Algumas pessoas chegam à ignorância de dizer que se alguma personalidade chega até veículos de mídia para falar sobre o assunto é “para se aparecer”.

Sinto muito, meus amigos. Mas se todas as personalidades femininas resolvessem falar o depoimento seria praticamente o mesmo.

Pode ter sido uma agressão física. Ou verbal, ou moral.

Pode ter sido um abuso físico. Ou verbal, ou moral.

Pode ter sido um estupro. Mas pode ter sido visual, pode ter sido virtual, pode ter sido sem penetração.

Não basta apenas respeitar o não.

Há muitos anos estamos debatendo o que é estupro ou não, o que é abuso ou não, o que é agressão ou não.

É tão difícil assim entender que atos sexuais com uma pessoa estando ela contrariada ou fora de consciência plena é estupro?

É tão difícil entender que tirar vantagem de alguma condição melhor em você sobre o outro é abuso?

É tão difícil assim entender que agressão não é só física, mas que ofendendo verbalmente, ou desmoralizar uma pessoa também é agressão?

Eu já tive “nãos” ignorados.

Eu já fui desrespeitada enquanto dormia.

Eu já fui assediada em reuniões de trabalho (graças aos Deuses há bons anos isto não acontece).

Eu já fui tocada na rua, vestida com roupas compridas, enquanto ia ao trabalho.

A vergonha é a mesma.

Hoje não é mais proibido ou repudiado ter filhas. Mas o pesadelo continua o mesmo.

******

Uma babá foi presa por ter estuprado uma menina de nove anos de idade.

A babá diz que a menina ameaçava ela caso não cometesse atos libidinosos, fotografasse e armazenasse no tablete da criança.


Vai que a guria estava possuída pelo Pazuzu e agora ninguém acredita na pobre babá?

*nomes fictícios







quarta-feira, 18 de maio de 2016

Conclusões

Ainda sobre a situação atual no Brasil:



A maioria deles acredita na Bíblia.
Segundo a Bíblia “não só de pão o homem viverá, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus”.
Segundo Alcuíno de York (depois de tantos outros) “a voz do povo é a voz de Deus”.
E se a Cultura representa a identidade e a voz do povo, concluímos que...

***
Um estupro deixa de ser provocado pela vítima quando esta vítima é seu filho ou sua filha.
Um soco vindo de um marido só deixa de ter sido provocado por uma esposa intransigente quando esta esposa é você.
Bandido bom é bandido morto até o momento em que o bandido morto é seu familiar.

Ditadura só é ditadura quando contraria suas próprias crenças.





sexta-feira, 25 de março de 2016

"E depois a bruxa sou eu" ou "Como foi minha sexta-feira santa"

Hoje era sexta-feira santa.

“Era” no passado mesmo, porque para mim o dia já acabou. Sou daquelas que dormem cedo (a não ser que tenha uma maratona Game of Thrones lá em casa, daí a porra fica séria).

Como foi meu dia? Bom, preparei uma lasanha de abacaxi com (pasmem) peito de peru defumado, amanheci tendo contatos bem íntimos com meu marido, trancei meus cabelos, me embebedei com espumante brut (a bosta tinha graduação alcoólica de 11,5% - não me convidem para suave) e saí cantando “Hello” da Adele em embromeixon pela casa até que me colocaram na cama. Ah, xinguei meu gato que está impossível hoje, e meu filho teve sua aula de violão normalmente. E ouvi junto aos meus filhos as músicas que gostamos. Também estou escrevendo este monte de palavrões.

-Mas Carol, é um feriado santo!

Não para mim. Eu fiz tudo isto porque eu posso. Dá licença? Eu posso!

Posso porque fui excomungada. A meu pedido. Não achava justo ter meu nome sendo mais um número na estatística do Vaticano se não pratico absolutamente nenhum rito católico em minha vida. E não foi uma questão de rejeição. Foi uma questão de respeito.

O mesmo respeito que tive quando pedi desculpas a um colega evangélico num momento de vergonha alheia diante de uma colega católica/umbandista que ridicularizou o bispo da igreja que ele frequentava.

Também o mesmo respeito que me levou a não comungar numa missa festiva em comemoração a vinte e cinco anos de vida religiosa de um amigo de longa data. Eu poderia, não há fiscais para me apontar como excomungada. Mas porque agir como se nada tivesse acontecido? Eu não era mais a menininha de sete anos que ele catequizou. Mas ainda somos amigos e os principais valores que ele me passou não saem do meu comportamento.

O mesmo respeito que me impediu de batizar meus filhos na igreja católica. Se eles nunca praticariam seus ritos até terem idade de escolher no que acreditarem, batizá-los seria uma grande mentira, e como o oitavo mandamento dos cristãos diz para não levantar falso testemunho, e isto para mim inclui mentir, não mentiria a eles.

Esqueci-me de outra coisa que fiz hoje o dia inteiro. Ovos de chocolate. Vários. Uns grandes, outros pequenos. Foram mais de um quilo de chocolate nesta brincadeira. Se vou empanturrar meus filhos? Não (claro que eles vão ganhar também). Mas o mais importante é que eles fizeram os ovos hoje junto comigo. Eles vão para doação à ala infantil do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Preferi eu mesma fazê-los e colocar bombons bem macios para evitar riscos de engasgos. Criança que é criança relaciona Páscoa com chocolate, e embora eu não acredite muito nesta relação, por que não deixa-las felizes, principalmente quando são privadas de tantas coisas?

E hoje embora tenha feito tudo que as pessoas evitam fazer em um feriado santo me pus a lembrar da lotação dantesca do Mercado Público de Porto Alegre nesta semana em que todo mundo procura peixes caríssimos para comer (ainda acho que esta história de bacalhau tem relação direta com a família real portuguesa que chegou aqui em 1808, mas deixa quieto), discute qual vai ser o prato mais fino e qual o melhor vinho. E claro também, se amontoa nas filas por seu chocolate. Vejo também cristão se referindo a “comemorar” a sexta-feira santa. Oi? Tá comemorando o que, filho? A delação premiada mais famosa da História? Gente, vi até cristão sem saber dizer se no Natal se comemorava o nascimento de Cristo e na Páscoa a ressurreição!

Vi gente dizendo que desejava a paz mundial, mas estava ostentando selfies lindas em Gramado. Não que uma pessoa que visita Gramado não possa desejar a paz mundial; mas se teu desejo é este não deveria estar ajudando pra que isto aconteça?

Vi gente que passou o ano inteiro dizendo que Jesus era seu melhor amigo indo pra praia e servindo banquete. Darling. Se ele é teu melhor amigo, lamento informar, mas hoje é uma data escolhida pelos cristãos para vivenciar o luto. Neste momento, pelos teus ritos, teu amigo está morto. E tu lá, de boas na praia? Imagina que maneiro o Samahin pegando e eu ridicularizando o além-túmulo. Eu hein?

Depois me peguei a lembrar de outro momento. Havia saído de um ritual de Beltane com minha família e dei lugar no ônibus a um rapaz que estava com uma bebezinha no colo. Ao me levantar olhei para o fundo do carro e lá estavam TODOS os bancos ocupados por pessoas com a camiseta da marcha pela família que havia ocorrido no mesmo dia; e uma moça sentada NO CHÃO (degrau) com um bebê no colo. Não vou falar mais nada por dois motivos: primeiro que me embrulha o estômago. Segundo que piada explicada não tem graça.

Daí fico me perguntando que raios aconteceram com os valores que o cristianismo pregava (Um detalhe infame que pode fazê-los cair para trás, meus caros amigos cristãos: já estivemos do mesmo lado. Os romanos perseguiam vocês e nós ao mesmo tempo! E por motivos idênticos.)! Nem filminho de Jesus na TV aberta tem mais! O sentido das coisas se perdeu totalmente.

Aliás, quer um conselho? Um conselho de amiga, de coração?

Pega as crianças, explica o que Jesus fez na Terra, e depois assiste “A Última Tentação de Cristo”, do Martin Scorcese (Sou tão gente boaque vou deixar o link aqui). E aí pergunta o que teria mudado se Jesus tivesse escolhido um caminho diferente. Não vou te mandar ler Stead,  Lobo Antunes, Caldwell, Stern e Nunes. Menos ainda debater a teoria dos laranjas (se quer saber mais daí sim, te aconselho a procurar pelo Danillo Nunes). Seria maldade demais da minha parte.

Na verdade pensei neste textão o dia inteiro, e estou acabando ele quando a sexta-feira santa acabou de fato. Daqui há pouco os cristãos estarão lembrando do momento em que o sepulcro foi encontrado vazio. Um momento fantástico da mitologia cristã.

Mitologia sim. Eu posso. Se Lugh e Morrighan são ditos na minha frente como seres mitológicos e devo encarar isto com naturalidade, eu posso dizer isto. Juro que pelo simples fato de não ser cristã não me importaria nem em trabalhar nos feriados de vocês, desde que pudesse me resguardar nos meus - ah, esqueci, não são feriados! Mas bem que podia, né? - .

E não quer dizer que eu duvide da existência do Deus de vocês, e menos ainda da do filho dele.

Que a paz esteja entre todos nós. De verdade.


domingo, 27 de setembro de 2015

Lembranças Setembrinas






Enquanto escrevo sorvo do doce-amargo chimarrão
E lembro dos meus tempos de chinoca
Na Setembrina dos Farrapos
Minha querida Viamão.

Meus bordados e crochês de pequena
O cheiro da chimia de chuchu colhido na cerca
As benzeduras da minha bizavó.

Das vezes em que declamei
Cantei
Pintei
Interpretei
Em festivais.

Das histórias que aprendi
Da cultura que defendi
Da pilcha que vesti
Das prendas que entendi.

Lembro das teias da vida
Que me levaram p’routros pagos
E enquanto bebo desta seiva
Não é um chasque que escuto
Nem chamamé nem milonga
É do rock todo inglesado
Que vem a trilha sonora
P´ra minha reflexão.

Fico aqui pensando
Que ainda sou aquela guria cheia de saias
Mas hoje vestindo calças
Enfrentando muito macho
Na peleia do tal de mercado.
Não preciso de uma faca na guaiaca
Nem de rebenque ou açoite
Preciso mesmo do que o vento frio do pago onde cresci me ensinou
Paciência, doçura e altivez
Uma dose de força e coragem
Pois da prenda que sou
Disto não posso me separar.

Mas penso que mesmo agindo de maneira diferente
Do que me ensinaram
Minha essência não vai embora
E não sou menos prenda, menos gaúcha, menos guapa
Do que as meninas que andam pilchadas
Como há muito deixei de andar.

E lembro então de pagos ainda mais distantes
Que não conheci
Mas que foram origem de tudo
Que hoje conhecemos aqui.

Sem as alemoas não teria chimia
Sem as polacas não teria festa com polonese
Sem as portuguesas não teria xale
Sem as açorianas não teria bordado e renda
Sem as espanholas não teria abanico e saia rodada.

E em uma cultura parida de tantas outras
Não posso esquecer que estas pessoas são tão gaúchas quanto eu
Órfãs de pago
Aquerenciadas em nossas coxilhas.

E sendo assim, quem sou eu p’ra dizer que é ruim
Gostar de baião e repente
Comer tapioca e acarajé
Contar causos de entradas e bandeiras
Sambar no carnaval
Vaquear em pantanal
E garantir os caprichos dos bois?

Ainda mais sabendo que mesmo em outros pagos
Quando deitarem em seus catres
As estrelas que os olhos deles vão enxergar
São as mesmas que os meus.

Caroline Garcia

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Era uma vez O Sul



- Pois tu sabes que até agora não caiu a ficha?

- Então, já era sabido que a crise do impresso tinha chegado naquelas paragens.

- É... Há que se adequar.

- Mercado maldito este!

- Mas criatura, este mercado não vai acabar. Lembra daquela frase clichê: “a comunicação nunca vai acabar... ela só vai mudar de plataforma”? É assim. Tem que virar multimídia, e...

- Ah, eu vou morrer de fome! Mal sei programar uma câmera digital doméstica!

- Então, cara! Vai fazer um curso, estudar.

- Estudar? Tu acha mesmo que eu preciso estudar? Minha escola é a vida, meu filho! É a estrada. Há quantos anos tu achas que eu reporto daqui da minha cadeirinha? Não tenho mais condições de fazer estas loucuras! Tempos bons aqueles que a gente perseguia bandido e vinha correndo pra redação bater os dedos na Olivetti. Uma lauda, um cigarro, uma lauda, um cigarro. Depois era o bar da esquina e um monte de cerveja. Bons tempos.

- Mas as pessoas não querem mais saber o que já aconteceu! Eles querem saber o que acontece na hora!

- Que escutem rádio.

- Tu estás andando em looping.

- Todos nós estamos. Vamos todos ficar desempregados mesmo, com esta enxurrada de crianças que pensam que sabem escrever só porque recebem um monte de curtidas e coments. Uma verdadeira vergonha!

(...)

- Ainda não caiu a ficha.

- Que ficha, rapaz? Nem vai cair! Isto é um absurdo! Onde já se viu? Depois estamos todos com nariz de palhaço gritando nas ruas e ninguém sabe por que! Pouca vergonha! Acham que podem se livrar assim da gente?

- E eu me peguei pensando nos impressores...

- Ah, eles que vão trabalhar numa gráfica!


-Oi?





terça-feira, 19 de agosto de 2014

Sobre meu espelho

Parecia prata...
...mas era apenas o tempo.

Caroline Garcia

Imagem retirada do Google Images

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Ave Sonora - Parte I

"Ave não chora pois se agora somos só dois
Vai ver depois seremos mil
Ave não chora que sem demora
Em um segundo conquista o mundo nosso assobio"
                                         João Chagas Leite - Músico Gaúcho




- Te acalma, mãe, ninguém vai ler a minha mente. – Acabou com uma conversa nervosa com a mãe, que questionava a amizade da moça com alguns estudantes cabeludos e barbudos.

- Minha filha, tu sabe que mulher que pensa demais incomoda.

- Isso era o que a vó pensava, e agora tá lá, morta e enterrada no cemitério da Santa Casa, sem ter sido nem feliz com a vida medíocre que ela levava com o vô.

A mãe apenas balançou a cabeça e voltou a lavar a louça.

Clara vivia entre rixas e discussões com a jovem senhora que há pouco ficara viúva de um marido autoritário como o próprio pai era. Por isso a menina começara a fumar escondida embaixo do porão, onde ouvia as músicas de Chico Buarque sem risco algum. O mesmo porão onde descobrira o sexo com seu amigo Otávio, em uma noite quente de verão, enquanto os pais estavam de férias em Cidreira. Nunca mais tocaram no assunto, mas ela parecia ainda sentir o cheiro daquele momento vivo em suas narinas, toda vez que lembrava.

- Sabe, mãe, não quero acabar que nem tu, com a barriga na frente de uma pia, lavando louça. – Comeu mais uma mordida de pão.- Quero viver minha vida do meu jeito. E não tem mal nenhum dizer o que a gente pensa.

Enxaguou a xícara em que estava tomando café, fazendo a mãe chegar um pouco para o lado. Beijou a testa da mulher rápida e automaticamente despedindo-se, estava indo trabalhar.

O caminho era sempre o mesmo.

Passava pelo centro da cidade com o jornal embaixo do braço, sob a roupa.

Clara não era de se intimidar. Caminhava com passos apressados como se fosse apenas mais uma trabalhadora do comércio na região. Mas tinha algo que a diferenciava dos outros. Algo muito peculiar: a coragem de pensar, mesmo que não fosse permitido.

O dia estava um pouco nublado, era fim de abril. Vestida com um casaco comprido, porém leve, que batia com a barra nos joelhos dela, Clara estava aquecida o suficiente para não sentir nenhum desconforto, e de certa forma até admirava a beleza morta das árvores da capital em um dia de outono. Seu porte pequeno dera o apelido com o qual Otávio se referia a ela: “a Baixinha isso, a Baixinha aquilo”. E ela nem era baixinha. Ele é que era alto, segundo ela mesma dizia para se defender. Tinha os cabelos volumosos, com uma cor melada, cacheados quase crespos, que prendia com uma faixa na altura da testa, sempre com cores que combinassem com sua roupa. Eram compridos e cobriam metade de suas costas.

Próxima ao muro que separava a avenida do rio que alguns estudantes afirmavam de pés juntos que era um lago (O que não fazia diferença nenhuma para Clara, pois para ela rios ou lagos são todos depósitos de água; e água é sempre água.), ela atravessou a rua. Caminhava pelo costado de um prédio amarelo, com uma grande porta fechada, próximo ao Banco. Foi então que sentiu um leve toque de mão em seu ombro esquerdo.

Olhou para trás. Era um homem estranho. Usava óculos escuros e tinha uma barba cerrada, com cara de poucos amigos.

O mesmo fez um sinal com a cabeça indicando a rua ao lado. Não podia se opor. Estava sozinha com o homem, e as pessoas chegavam muito aos poucos para trabalhar. Indo pela rua oposta à direção do mercado onde trabalhava, Clara parecia tensa, e o homem não saía de seu lado.

Depois dos minutos de silêncio mórbido que acompanhara a caminhada dos dois até a porta pela qual ele indicou que entrasse, ela viu que um casal caminhava próximo a eles.

- Meu nome é Ana Clara Fonseca de Moraes! – Clara gritou o mais alto que pode, chamando a atenção dos dois. - É vinte e um de abril de mil novescentos e setenta e cinco! Trabalho no...

E ia continuar gritando informações sobre si, se o homem não a tivesse empurrado para dentro.

- Espertinha, hein? Não vai adiantar de nada, tu sabe disso. – Ele tinha um sorriso sarcástico.

O homem a conduziu por um longo corredor, entrou em uma saleta, a colocou com força sentada em uma cadeira. Enfiou a mão dentro de sua roupa e de lá arrancou o exemplar do jornal que carregava todos os dias. Jogou na mesa. Outro homem, um pouco mais velho que aquele pegou o exemplar e admirou a capa.

- Interessada em saber sobre a vida do nosso presidente, menininha? – O homem era irônico. – Ou mais interessada em xerocar essa pôrra e distribuir na faculdade?

- Eu não sei do que o senhor está...

- Cala a boca que quem fala aqui sou eu! – Ele bateu na mesa. – Todos sabem que esta é uma pergunta retórica. Tanto estudo pra nada... não tem medo?

- Não tenho do que ter medo.

- Eu penso o contrário...

Aquela manhã seria igual a qualquer outra, não fosse o soco no nariz que fez a visão de Clara escurecer e tudo se apagar.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

A Terceira Carta - Parte VI (FINAL)

Dois meses depois, Jacob estava no campo de trabalho de Dachau. Estava bem mais magro e abatido, devido aos serviços forçados. Lá não havia conforto, nem proteção, nem amigos. No lugar da comida que Elka dividia com ele, uma ração de sabor salobre. Quando não havia ração, comiam sopa de papelão com água e sal. Pessoas adoeciam e morriam com a mesma velocidade com que os soldados SS traziam mais prisioneiros, todos os que contrariavam a “pureza e perfeição arianas”.
          Foi num dia chuvoso que um dos soldados puxou Jacob do meio da lama, onde empurrava um carroção com peças de metal. O soldado perguntou seu nome completo e olhou sua numeração tatuada no braço para ter certeza de quem era. Depois, levou-o para dentro de uma das salas da base. Lá, um oficial entregou um envelope a ele:
          - Olhe aqui, meu rapaz. Leve com você, e não conte para ninguém. Pode ter certeza que alguém pagou muito caro para que esta carta chegasse às suas mãos... E se alguém souber que entreguei, vou pagar mais caro ainda... E você vai pagar junto!
          Voltando ao alojamento, à noite, Jacob escondeu-se atrás de algumas caixas para ler o precioso documento.
“Querido Jacob.
Não sei se vai receber esta carta, mas mesmo assim, achei importante escrevê-la.
Gostaria que soubesse que não me arrependo de nada. Não me arrependo nem mesmo do silêncio que guardamos durante tantos anos.
Não me arrependo nem mesmo de ter cedido seu espaço em meu coração à outra pessoa, até o dia em que nosso sentimento fosse maduro o suficiente para transbordar.
Foi por um curto espaço de tempo, mas fui muito feliz ao seu lado.
Estou em um presídio comum em Nuremberg. Minha cidadania alemã e as dívidas que alguns políticos têm comigo fizeram com que eu não fosse para um dos campos de trabalho forçado, por conta de minha traição. Infelizmente, por você não pude fazer nada, mas vou tentar, prometo providenciar alguma forma para ajuda-lo a fugir de nosso país.
Meu amor, minha vida, sinto muito por esta incerteza de que vai amanhecer vivo. Queria que tudo isto acabasse agora, para podermos estar um nos braços do outro.
Porém, o amanhã a Deus pertence. A única certeza que devemos ter é de que errados foram os outros, por não entender que o amor não escolhe credo, raça, ou sexo.
Eternamente seu...
Franz”.

Elka estava na casa da mãe. A mansão onde vivera com Franz nos últimos dez anos agora era propriedade do governo alemão. Ignorava totalmente a existência de uma terceira carta, uma confirmação às outras duas de que o amor de Franz por Jacob era maior do que a guerra que agitava o mundo inteiro.
Às vezes pegava-se perguntando a si mesma em pensamento se havia sido ela a atrapalhar o amor daqueles dois homens, e não Jacob a ter atrapalhado seu casamento. Então preferia tentar esquecer.

Mas era impossível. Latejavam em sua mente duas imagens daquele amanhecer em que decidiu chantagear o rival: a do marido deitado ao lado de seu amigo judeu, aconchegando-o em seu peito, dormindo o sono dos que se amam exaustivamente; e a dos soldados SS destruindo o sótão, após um chamado seu.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A Terceira Carta Parte V

Ao amanhecer, quando foi vestir-se, juntou o paletó de Franz do chão e não resistiu a revistar os bolsos. E foi em um deles que encontrou uma segunda carta:
“Amado...
Temos que ter muito cuidado para que ninguém saiba de nada, não deixe de ser presente em seu lar. Depois daquele bilhete que deixei no casaco que me emprestou, cheguei à felicidade plena em saber que nosso amor era recíproco há tanto tempo.
Coragem, meu querido. Temos que ter toda a coragem do mundo para continuarmos sendo felizes. Esta mesma coragem que nos uniu, deve dar continuidade e descrição ao nosso sentimento.
Um dia, talvez seremos livres, mas por enquanto vigia.
Seguirei eternamente te amando”...
            Aquilo já era demais! Além de tudo o que dizia a carta, exibindo com clareza o fato de Franz falar nela para a amante e da distância que mantinha os dois afastados; a desgraçada ainda usava emprestados os casacos que ela mesma mandava lavar e perfumar a seco!

            Foi então que passou-lhe uma ideia nebulosa na cabeça. Na sociedade hipócrita em que viviam, ninguém condenaria Franz por adultério, mas a mulher em questão pagaria um alto preço por ter-se oferecido ao seu homem. Certamente, Jacob não se negaria a informar quem era ela... ainda mais se ameaçasse entrega-lo à Gestapo. Vestiu-se e subiu rapidamente ao sótão.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A Terceira Carta - parte IV

       
O brilho de diamante nos olhos de Elka agora não passava de reflexos opacos de cerâmica. Diante dos outros, Franz continuava o mesmo marido gentil e apaixonado. Entre quatro paredes, silêncio e pudor. Se antes Franz raramente a tocava como mulher, agora era nunca.
            Decidira que daquela noite não passaria. Ou Franz a notaria, ou ela voltaria à casa de sua mãe. Vestiu apenas um longo robe de seda vermelha que revelava as formas de seu corpo. Maquiou-se, penteou os cabelos que sem as presilhas pareciam sempre esvoaçantes.
            Franz entrou quarto adentro afrouxando a gravata e tirando o paletó. Elka praticamente saltou sobre ele. O homem parecia assustado, mas não a empurrou. Ela conseguiu coloca-lo na cama. Montou sobre ele e abriu o robe. O pingente de diamante movia-se entre os seios palpitantes com o arfar de sua respiração. Franz arregalou os olhos:
            - Elka, o que é isto? Enlouqueceu?
            - Enlouqueci! Não aguento mais! Quero saber o que está acontecendo! O que é Franz? Não sou mais atraente para você? Olhe para mim! Olhe... O corpo que você sempre desejou... O colo quente que o recebia nos invernos passados... – Pegou as mãos dele e colocou sobre sua virilha. – Aquilo que chamava de caminho do paraíso. Vê? Está aqui exatamente como tem deixado, com o frio do inverno tomando conta. Como é que vai ignorar uma mulher como eu, que sempre deu tudo o que queria, que foi sua companheira até hoje?
            - Elka, entenda...
            - Não, Franz! Eu não vou entender mais nada! – E saiu de cima dele, dando de mão na carta. – A única coisa que entendo é isto aqui! Sabe o que é isto, querido? Sabe de onde vem?
            E leu a carta em voz alta, fazendo trejeitos de coquete enquanto Franz sentava lentamente na beirada da cama.
            - O que ela tem que eu não tenho? – Elka beirava a histeria. – É vulgar o suficiente para tentar um homem casado? Se houvesse me avisado, “meu bem”, eu teria sido vulgar como tanto gosta! É uma prostituta? Pois se quisesse, me borrava com meus batons vermelhos e pararia seu carro em uma esquina... Não me custaria realizar suas fantasias! – Aos poucos foi baixando seu tom de voz e ficou com os olhos úmidos e parados. – Já sei... Ela não é seca. Todos diziam que nos faltava um filho. E o doutor Johan já me esclareceu. Sou seca. Não posso nem te dar filhos... Não te contei porque pensei que na esperança de tentar engravidar-me não pararia de ter-me como mulher. Diga-me, Franz... Ela lhe deu algum filho? Ou sabe-se lá o que mais ela pode dar que eu não posso?
            E caiu de joelhos, chorando copiosamente, seminua, descabelada e com a maquiagem borrada.
            - Isto tudo é ridículo... – Foram as palavras que Franz balbuciou antes de sair do quarto.

            Elka passou a noite deitada no tapete do quarto, chorando, porém, decidindo como iria bater à porta da casa da mãe. O que diria não sabia, mas ia mesmo assim. Não podia aceitar tamanha humilhação, mesmo desconfiando que seu pai a acharia inútil por não poder dar-lhe um neto ariano.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A Terceira Carta - parte III

Os seis meses que se seguiram foram de preocupação na casa de Franz.
- Olhe aqui, menino! – Dona Isolda repreendia Franz como se ele tivesse cinco anos. – Eu conheço esta cara! E não adianta se encolher aí no canto da mesa! Quando vem pedir para tomar chocolate quente na cozinha, no meio da manhã, enquanto preparo o almoço; é porque o problema é do grosso! Pode ir abrindo esta boca!
- Mas eu não tenho nada para dizer, Dona Is...
- Franz! – A velha cozinheira curvou-se, quase encostando o nariz no dele. – É o dono da casa, agora, mas lembre de que até papinha dei na sua boca, quando desmamou! Portanto, estes seus quase dois metros de altura não me intimidam! O problema é com a menina Elka, não é? Esta menina está cada vez mais estranha... Agora deu em querer comer só no quarto, e pede o dobro de comida. Como é que continua tão magrinha? Você tem é que parar de ir todos os dias para a fábrica. Já enriqueceu o suficiente. Fique sabendo que seu pai ia apenas duas vezes por semana para não deixar sua mãe sozinha. Está achando que suas panelas de inox são mais importantes do que aquela mocinha que a cada dia fica mais pálida dentro do seu quarto? E ajeite estes ombros para falar comigo, Franz!
- Mas é que com a guerra...
- Guerra? Às favas com a guerra! – Dona Isolda falava com a liberdade de quem havia terminado de criar Franz após a morte de seus pais no naufrágio de um cruzeiro, quando ele tinha em torno de dez anos de idade. – se quer vender mais panelas, mande seus operários venderem mais panelas, ou contrate mais pessoal, não sei. Mas deve dar mais atenção... – E de repente mudou a fisionomia e ergueu uma colher de pau apontando-a para ele. – Franz! Não está por um acaso fabricando balas de fuzil ao invés de panelas, está? Você sabe que seu pai não gostaria que participasse da guerra!
- Não... eu...
- Ah, bom! Em todo caso, deve dar mais atenção à sua família... – A velha mudou de expressão de novo, baixando a colher. – Família! É isto! Deve providenciar uma criança para correr pela casa! Elka e você não são mais adolescentes! Tem que providenciar logo um filho. Quem sabe até ela não fique mais alegrinha, e...
E Franz esperou que Dona Isolda se voltasse novamente ao fogão e saiu cautelosamente; deixando-a falando sozinha.
Ela mal sabia que Franz não podia arredar pé da metalúrgica que ela chamava de “fábrica de panelas”. A guerra fazia com que ele não pudesse importar metal, e muito menos exportar os objetos que fabricava.
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A rotina de Elka tornara-se sistemática. Subia no sótão pelo menos três vezes ao dia, levando comida, água, e até livros para Jacob. Nunca havia se aproximado tanto assim do amigo do marido descobria um homem inteligente e delicado nos gestos e na educação. Havia vezes em que deixava almofadas amontoadas em sua cama para que quem visse acreditasse estar ali deitada. Assim, poderia passar horas conversando com o amigo.
Elogiava o “hóspede” judeu para Franz, que nos primeiros dias concordava efusivamente, mas com o passar do tempo, apenas acenava com a cabeça, conversando com ela apenas o trivial.
Observando a distância do marido e percebendo que eram cada vez mais raras as vezes em que a procurava na cama, Elka foi ter com Dona Isolda, que muito entendia da vida.
- Filhos, menina. Acho que apenas um moleque para correr de calças curtas e fazer barulho nesta casa pode salvar o casamento de vocês. – Disse a senhora, sem parar de sovar a massa cheirosa de seus biscoitos de Natal, rescendendo a noz moscada e cravo.
Elka agradeceu decepcionada, e foi ter com Jacob.
- Realmente... – ele parecia reflexivo. – É estranho vocês serem casados a tanto tempo e não terem filhos. Já foram a um médico? Claro, não quero assustá-la, é só por precaução. E creio que isto faria Franz muito feliz, ele sempre gostou muito de crianças.
 A mulher desceu do sótão e correu ao telefone. Pediu à telefonista que ligasse para o médico da família. Marcou a consulta e foi para seu quarto.
A saudade de Franz era muita. Sentia falta do cheiro, do toque, do gosto dos beijos do marido. Não conseguia entender o que estava acontecendo; sempre foram apaixonados e viviam uma vida íntima intensa e feliz. Chegou a se perguntar se seriam ciúmes dela com Jacob. Era no mínimo estranho. Não conteve as lágrimas, e deitou-se na cama, sobre o travesseiro dele. Talvez sentir o cheiro ali, talvez a marca de seu corpo no colchão amenizaria a dor de passar as noites que ficavam cada vez mais frias ao lado de alguém que se deitava de costas para ela. Acariciava o colchão como se Franz ali estivesse. Foi quando sentiu uma ponta de papel saindo do forro entre os lastros da cama. Puxou. Era uma folha de papel dobrada em três partes. Abriu. Era uma carta:
“Meu querido.
Não imagina o quanto tem sido difícil manter o silêncio com o passar dos anos.
Chego a sentir sua pele alva tocando em meu corpo, seus cabelos dourados repousando suas preocupações em meu peito.
Como queria poder gritar, como queria poder viver este amor... como te desejo noite e dia! Como queria que soubesses.
Com amor.”

          Um tremor subiu pelo corpo de Elka. Estava tudo claro. Franz tinha outra mulher na rua! O pranto aumentou mais ainda. Sentiu vontade de sair correndo, de ir até a metalúrgica e fazer um escândalo. Mas não foi. Era uma dama da alta sociedade alemã, respeitada pela sua altivez e elegância.

          Logo lembrou então da amizade com Jacob. Com certeza ele deveria saber até quem era a sirigaita. Mas não pediria ajuda. Deixe estar que fiquem rindo-se dela pelas costas! Mais cedo ou mais tarde, Franz veria que não valeu a pena; que ela sim, era uma mulher feita para ele. 
         Guardou a carta no mesmo lugar e preparou-se para ir ao salão de beleza. Tinha um homem para reconquistar.

Esta ilustração é uma releitura de Vincent Noir, e chama-se "Woman in the rain". Só que onde estava disponibilizada não dizia quem pintou. Não consegui entender a assinatura. Se alguém souber, por gentileza me informe nos comentários para que eu possa editar e colocar a informação correta.