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terça-feira, 19 de setembro de 2017

Nunca quis um filho gay

Quando meu filho nasceu, após sete dias na UTI Neonatal foi direto para meu local de trabalho comigo.

Nas coxias de teatros meu filho conheceu os mais variados tipos de pessoas, passou por todos os tipos de colos, e teve todo o cuidado que elencos grandes poderiam dar. Qualquer resmungo e lá estava alguém que havia ficado fora da cena vendo o que a “mascote” da equipe precisava.

Consequentemente meu filho cresceu tendo por brinquedos objetos de meninas e meninas, pois vivia com acessórios cênicos nas mãos. Para ele, era absolutamente normal minha discussão com o pai dele que havia pego meu delineador emprestado e esquecera de devolver. Isso, porque a maquiagem nada mais era do que um instrumento de trabalho do pai dele, e da mãe também, e que nunca foi fator predominante para definir nosso gênero e menos ainda opções e comportamentos sexuais.

Nos primeiros anos, meu filho se perdia em meio aos nossos pincéis de maquiagem, e testava cores em nossos rostos. Sempre teve talento para desenho, e isso se refletia nas caracterizações que criava em nós, daquele jeito peculiar que uma criança faz.

Um dia, seu pai e eu nos separamos, nas voltas que a vida dá. Mudei de cidade, e meu filho mudou o lugar onde ficava. Ele que nunca foi proibido de ficar entre as meninas brincando, agora tinha restrições. E mesmo que eu dissesse que era contra este comportamento, que acreditava que todos eram iguais, a resposta que tinha era de que meu filho poderia entender o mundo do jeito que ele quisesse, mas que havia coisas de homens e coisas de mulher. Junto com sua irmã, ficou por quatro anos aos cuidados de uma família mais conservadora enquanto eu trabalhava. E em nenhum momento vi isso como algo negativo: meu filho precisava entender a diversidade. Precisava entender que havia locais onde pessoas pensavam de uma maneira diferente e ele devia respeitá-las da mesma maneira que desejava ser respeitado. Meu filho nunca foi maltratado neste lugar, mas presenciou meninos acreditando que provavam sua masculinidade lutando entre si não brincando com meninas. E presenciou também meninas que acreditavam comprovar sua feminilidade costurando e demonstrando timidez nos “bailinhos” promovidos pela família. E justamente por presenciar “coisas de homem” passou a praticá-las.

Perguntei há pouco tempo se queria testar maquiagens em mim. Ouvi um não bem redondo. “Mas tu sempre gostou”, retruquei. “Não gosto mais”, ele respondeu sem jeito.

Não ia insistir. Minha filha discretamente cochichou para mim que havia visto seu irmão falando que isso era coisa de bicha, veado, gay. E que ele não era gay. E mesmo assim deixei a confusão acontecer. Meu filho precisava entender e lidar com a rejeição de algo que gostava por causa de possíveis rótulos.

Passei a mostrar que nada tinha de gay um homem usar maquiagem. Ele entendeu. Fiz um esforço verdadeiro para que meu filho agisse como achava melhor.

Parecia uma busca incessante por uma identidade original dele. Um dia me perguntaram no trabalho: “Mas e se ele for gay? Tu quer um filho gay”?

Nunca quis um filho gay. Nunca, de verdade. Ensino ao meu filho, que agora termina sua educação moral exclusivamente em casa, pois já tem 13 anos; que ele pode dizer não para uma menina quando quiser. Quando me refiro a um futuro onde ele terá uma casa e uma família, nunca uso a palavra esposa. Falo pessoa: a “pessoa que viver ao teu lado”. Ensino a ele artes e outras delicadezas. Costurar, cozinhar, limpar. Ensino tudo junto à sua irmã: além disso tudo que falei, planejamento de carreira, educação financeira, defesa pessoal e comportamento social.

Ensino tudo isso, porque nunca quis um filho gay. Nem uma filha lésbica. Isso porque não é um direito meu modelá-los neste sentido. Não é meu direito de mãe torná-los homo ou heterossexuais. Para mim, de que importa o gênero da pessoa que meus filhos escolherem para compartilhar a vida, ou apenas a cama? O que me importa é a integridade física, mental e moral deles. E isto independe do sexo que vierem a praticar, desde que haja respeito, educação, cuidado e conhecimento. É isso que quero. E amor de mãe, meus amigos, é uma “doença”. E não tem cura. Ao contrário da homossexualidade, que também não tem cura, mas não é uma doença.


Nunca quis um filho gay. Só quis filhos completos, sejam eles como forem; e isso é um direito deles.

Imagem extraída do Google

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Precisamos falar sobre o Santander

Não apenas sobre o Santander. Mas sobre Cultura, Arte e o verdadeiro motivo de sua existência.
Quando falamos em Cultura não estamos falando apenas em Arte. Estamos falando em “todos os produtos comportamentais, espirituais e materiais da vida social humana” (TYLOR, 1877). Porém, não temos como falar em Cultura sem falar em várias formas de Arte, uma vez que é através dela que o homem, desde sua pré-história, representa seu cotidiano. Gravem bem estas últimas palavras.
O primeiro homem coloriu a primeira parede de caverna com as mãos sujas, representou ali suas digitais. Quando foi seguido por contemporâneos que aperfeiçoaram sua técnica e passaram a ilustrar figuras de animais sendo caçados por grupos de homens, podemos observar que a partir dali foi-se criando um padrão, uma normatividade. Ou seja, passou a tornar-se normal homens usarem lanças ou armadilhas para aprisionar seu alimento, pois através de gravuras podiam observar que tribos assim o fizeram e havia dado certo. Também houve aqueles que enrolando argilas com as mãos criavam falos para que fossem “cultuados”. Afinal, sem o falo não haveria reprodução, embora muitas tribos ainda acreditassem que a fêmea engravidasse quando deitada sob a lua. Quando tiveram acesso aos falos de argila entenderam a mensagem: os filhotes vinham da relação sexual regular. Aos poucos foram entendendo que a relação entre heterossexuais garantia a sobrevivência da espécie. E repetiram este padrão, até constituírem família. Também refletindo sobre as caçadas registradas nas paredes, tiveram a ideia de começar um trabalho de pecuária. Quão arriscado era sair correndo com uma lança atrás de um mamute, enquanto sua família o esperava? Nada além do produto da reflexão sobre os registros de um cotidiano primitivo.
A Arte sempre foi religiosa e não religiosa também. Durante a Idade Antiga vemos representações de ritos, mas vemos representações de cotidiano também. Ao mesmo tempo em que vemos Deuses egípcios pintados em paredes de pirâmides, vemos também calendários e descrições de colheitas. Vemos na Grécia Deuses que mostram o padrão de corpo belo para a sociedade grega, e vemos também afrescos mostrando festas, esportes, contos. Vemos escritos em alfabetos que ainda passariam por muitas mudanças a escrita de músicas, mitos, lendas, poemas. Todos registros de como as diversas civilizações em ebulição se comportavam. Qual cidade nunca quis ser modelo em educação como Atenas, ou modelo bélico como Esparta? Sem estes registros não iria querer, não haveria tal conhecimento. Aqui abrimos um parêntese: “Entre nós reviva Atenas para assombro dos tiranos. Sejamos gregos na Glória e na virtude romanos”. Isto lembra alguém? Pois aqui começa nossa jornada.
A bela arte greco-romana foi contraventora. Quando? Quando aqueles que deram continuidade à organização social entenderam que o corpo humano era algo pecaminoso. Não estamos aqui falando da Idade Média de maneira pejorativa. Isto é História. Houve proibições, condenações, mas houve também registro artístico. Um registro adverso ao anterior, mas havia. Um período em que a figura humana podia ser retratada, desde que sem movimento, sem forma realista, sem perspectiva angulosa e de profundidade, tudo afim de evitar a visualização de vergonhas, pois isto poderia estimular o espírito pecador humano. Como estudamos (aqueles que estudaram a respeito), podemos observar que de nada isto adiantou. O espírito pecador continuava vivo. Assim como o espírito da ignorância, da privação, da miséria. Mesmo com uma arte manipulada para dizer apenas o que os mais fortes queriam tornar padrão entre os mais fracos, para que seus feudos continuassem organizados à sua maneira, o comportamento humano continuava humano. Mesmo com perseguições, o comportamento humano continuava humano. Os pênis continuavam existindo, as vaginas continuavam existindo, felações continuavam existindo, a pedofilia (infelizmente) já existia e continuou existindo, a zoofilia (infelizmente) já existia e continuou existindo, o incesto já existia e continuou existindo. Até mesmo outras religiões já existiam, e continuaram existindo. Mesmo com uma arte que passava por uma censura muito mais rigorosa que em qualquer outro tempo o comportamento humano continuava existindo. Inclusive entre aqueles que mantinham o poder em suas mãos.
Até o dia em que Giotto começou a humanizar seu trabalho e foi seguido por outros artistas que vieram gradativamente ressuscitando as belas artes greco-romanas.
Quem não admira as obras dos quatro maiores artistas do Renascimento? Que belos quadros, afrescos, esculturas, murais nos deixaram! Tudo isto contraventor. Tudo isto foi um escândalo. As transparências nas roupas, as formas, a luz, a perspectiva, o provável sêmen que Michelangelo usava em suas tintas para garantir fixação. Estudavam cadáveres às escondidas, temerosos de uma perseguição implacável. Neste período podemos ver a ascenção dos retratos. Quase sempre manipulados. Pois como nem sempre o retratado podia ser um exemplo do que era belo, um Photoshop manual era ali aplicado e estava resolvido o problema, mantendo assim cabeças sobre pescoços e a pele longe do fogo. Mas isso sim é bonito. Mesmo assim, através destas obres podemos conhecer a vaidade humana, um comportamento em voga na época.
A Arte não retrata absolutamente nada que não exista. Mesmo que seja um sonho de Frida Kahlo. Existe. É um sonho. Que seja um relógio liquefeito (talvez nossa modernidade líquida, como Bauman chama) de Dalí. Existe. Ainda é um relógio. Que seja o Minotauro de Picasso. Minotauros podem não existir, mas o mito existe. Seria um ato de zoofilia grego o que gerou o mito, e que até Monteiro Lobato recontou para crianças?
Partindo deste pressuposto, se substituirmos ovos e galinhas por arte e comportamento a pergunta se torna bem mais simples de responder. Uma vez que a arte reproduz algo que já existe, seria mesmo possível que a arte “incitasse” algum comportamento?
Ou estamos diante novamente do comportamento humano que prevê a acusação de um terceiro quando a culpa é minha? Sempre precisamos de uma “bengala” para nos apoiarmos em alguma contravenção.
Estamos diante de uma sociedade em que toda vez que a frase “a Arte não é moral nem imoral, mas amoral” de Oscar Wilde é citada, tal citação tem que ser obrigatoriamente acompanhada de explicações profundas sobre linguagem. E podem acreditar: o papel da Arte é ser puramente amoral, para que assim possa incomodar, tirar o expectador de sua zona de conforto. Este é um conceito que aprendemos no ensino fundamental, nas primeiras aulas de Educação Artística. Mas talvez não tenhamos prestado atenção, pois jogávamos um gouache qualquer no papel para termos nota e presença no final do trimestre, e entregávamos nas mãos do professor "tri louco" que nunca era levado a sério.
Sejamos sensatos. O problema nunca será o artista. Será a sociedade que ele retrata.
Por que ao contrário de condenarmos um artista, como se tudo o que ele retrata fosse fantasia dele, criada exclusivamente por ele para manipular uma sociedade já adoecida; não criamos debates em torno do que ele retrata, e encontramos assim soluções para que estes elementos não precisem mais ser retratados? Por que não entendemos a arte como um manifesto, como uma ferramenta de reflexão? Seria mais confortável continuarmos então com o ufanismo de Ary Barroso e seu país perfeito (isso era real?).
Um museu fechou uma exposição. Estão quase todos satisfeitos. As crianças que se prostituem nas estradas continuam ali. Os animais subjugados por seu “proprietários” continuam ali. Os religiosos (sejam cristãos ou não) que usam de uma moralidade criada para subjugar alguém seja social ou sexualmente continuam ali. Mas a exposição está fechada, e nossas crianças continuam tendo nojo do próprio corpo enquanto fazem suas descobertas (abusadoras ou abusadas) escondidos atrás do muro da escola, pois falar sobre o assunto é feio. Grande vitória de nossa sociedade. A exposição fechou. Viva!
Agora, falando em primeira pessoa: Podem acreditar, eu não gostei de escrever isso. E nem toquei no assunto de classificação indicativa, que proporcionaria aos pais e responsáveis por menores de idade o exercício do livre arbítrio em levar ou não sua família a um ambiente artisticamente contraventor (Porque sim, se é um direito do artista retratar, é um direito do expectador não assistir.). Queria mesmo escrever sobre uma sociedade onde todos são dignos e se respeitam. Em que todas as obras de arte são belas. Tão belas quanto os panfletos que recebemos na rua, onde crianças brincam com tigres em um campo verdejante sob um céu com arco-íris, enquanto seu pais sorriem para elas. Mas artista que sou antes de qualquer outra coisa que eu seja, precisava escrever sobre o que existe. Sinto muito, de coração.


Caroline Garcia – Atriz, Jornalista, Pós Graduanda em Gestão Cultural.

Imagem: Tadeu Vilani/Agência RBS