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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A Terceira Carta - parte III

Os seis meses que se seguiram foram de preocupação na casa de Franz.
- Olhe aqui, menino! – Dona Isolda repreendia Franz como se ele tivesse cinco anos. – Eu conheço esta cara! E não adianta se encolher aí no canto da mesa! Quando vem pedir para tomar chocolate quente na cozinha, no meio da manhã, enquanto preparo o almoço; é porque o problema é do grosso! Pode ir abrindo esta boca!
- Mas eu não tenho nada para dizer, Dona Is...
- Franz! – A velha cozinheira curvou-se, quase encostando o nariz no dele. – É o dono da casa, agora, mas lembre de que até papinha dei na sua boca, quando desmamou! Portanto, estes seus quase dois metros de altura não me intimidam! O problema é com a menina Elka, não é? Esta menina está cada vez mais estranha... Agora deu em querer comer só no quarto, e pede o dobro de comida. Como é que continua tão magrinha? Você tem é que parar de ir todos os dias para a fábrica. Já enriqueceu o suficiente. Fique sabendo que seu pai ia apenas duas vezes por semana para não deixar sua mãe sozinha. Está achando que suas panelas de inox são mais importantes do que aquela mocinha que a cada dia fica mais pálida dentro do seu quarto? E ajeite estes ombros para falar comigo, Franz!
- Mas é que com a guerra...
- Guerra? Às favas com a guerra! – Dona Isolda falava com a liberdade de quem havia terminado de criar Franz após a morte de seus pais no naufrágio de um cruzeiro, quando ele tinha em torno de dez anos de idade. – se quer vender mais panelas, mande seus operários venderem mais panelas, ou contrate mais pessoal, não sei. Mas deve dar mais atenção... – E de repente mudou a fisionomia e ergueu uma colher de pau apontando-a para ele. – Franz! Não está por um acaso fabricando balas de fuzil ao invés de panelas, está? Você sabe que seu pai não gostaria que participasse da guerra!
- Não... eu...
- Ah, bom! Em todo caso, deve dar mais atenção à sua família... – A velha mudou de expressão de novo, baixando a colher. – Família! É isto! Deve providenciar uma criança para correr pela casa! Elka e você não são mais adolescentes! Tem que providenciar logo um filho. Quem sabe até ela não fique mais alegrinha, e...
E Franz esperou que Dona Isolda se voltasse novamente ao fogão e saiu cautelosamente; deixando-a falando sozinha.
Ela mal sabia que Franz não podia arredar pé da metalúrgica que ela chamava de “fábrica de panelas”. A guerra fazia com que ele não pudesse importar metal, e muito menos exportar os objetos que fabricava.
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A rotina de Elka tornara-se sistemática. Subia no sótão pelo menos três vezes ao dia, levando comida, água, e até livros para Jacob. Nunca havia se aproximado tanto assim do amigo do marido descobria um homem inteligente e delicado nos gestos e na educação. Havia vezes em que deixava almofadas amontoadas em sua cama para que quem visse acreditasse estar ali deitada. Assim, poderia passar horas conversando com o amigo.
Elogiava o “hóspede” judeu para Franz, que nos primeiros dias concordava efusivamente, mas com o passar do tempo, apenas acenava com a cabeça, conversando com ela apenas o trivial.
Observando a distância do marido e percebendo que eram cada vez mais raras as vezes em que a procurava na cama, Elka foi ter com Dona Isolda, que muito entendia da vida.
- Filhos, menina. Acho que apenas um moleque para correr de calças curtas e fazer barulho nesta casa pode salvar o casamento de vocês. – Disse a senhora, sem parar de sovar a massa cheirosa de seus biscoitos de Natal, rescendendo a noz moscada e cravo.
Elka agradeceu decepcionada, e foi ter com Jacob.
- Realmente... – ele parecia reflexivo. – É estranho vocês serem casados a tanto tempo e não terem filhos. Já foram a um médico? Claro, não quero assustá-la, é só por precaução. E creio que isto faria Franz muito feliz, ele sempre gostou muito de crianças.
 A mulher desceu do sótão e correu ao telefone. Pediu à telefonista que ligasse para o médico da família. Marcou a consulta e foi para seu quarto.
A saudade de Franz era muita. Sentia falta do cheiro, do toque, do gosto dos beijos do marido. Não conseguia entender o que estava acontecendo; sempre foram apaixonados e viviam uma vida íntima intensa e feliz. Chegou a se perguntar se seriam ciúmes dela com Jacob. Era no mínimo estranho. Não conteve as lágrimas, e deitou-se na cama, sobre o travesseiro dele. Talvez sentir o cheiro ali, talvez a marca de seu corpo no colchão amenizaria a dor de passar as noites que ficavam cada vez mais frias ao lado de alguém que se deitava de costas para ela. Acariciava o colchão como se Franz ali estivesse. Foi quando sentiu uma ponta de papel saindo do forro entre os lastros da cama. Puxou. Era uma folha de papel dobrada em três partes. Abriu. Era uma carta:
“Meu querido.
Não imagina o quanto tem sido difícil manter o silêncio com o passar dos anos.
Chego a sentir sua pele alva tocando em meu corpo, seus cabelos dourados repousando suas preocupações em meu peito.
Como queria poder gritar, como queria poder viver este amor... como te desejo noite e dia! Como queria que soubesses.
Com amor.”

          Um tremor subiu pelo corpo de Elka. Estava tudo claro. Franz tinha outra mulher na rua! O pranto aumentou mais ainda. Sentiu vontade de sair correndo, de ir até a metalúrgica e fazer um escândalo. Mas não foi. Era uma dama da alta sociedade alemã, respeitada pela sua altivez e elegância.

          Logo lembrou então da amizade com Jacob. Com certeza ele deveria saber até quem era a sirigaita. Mas não pediria ajuda. Deixe estar que fiquem rindo-se dela pelas costas! Mais cedo ou mais tarde, Franz veria que não valeu a pena; que ela sim, era uma mulher feita para ele. 
         Guardou a carta no mesmo lugar e preparou-se para ir ao salão de beleza. Tinha um homem para reconquistar.

Esta ilustração é uma releitura de Vincent Noir, e chama-se "Woman in the rain". Só que onde estava disponibilizada não dizia quem pintou. Não consegui entender a assinatura. Se alguém souber, por gentileza me informe nos comentários para que eu possa editar e colocar a informação correta.

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