Páginas

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Sobre shorts, bermudas e silêncio.

O banheiro feminino é uma verdadeira fonte de informações e de conhecimento acerca do ser humano.

Estranha afirmação, não? Para mim, não. Foi lá que escutei colegas de trabalho das quais gosto muito chamando as meninas do colégio Anchieta de “burras que não queriam saber de estudar”.
Enquanto todos estão preocupados com a imagem de uma divisa entre nádegas e coxas expostas pela cavidade da costura de uma peça de roupa; deixam de reconhecer o rosto do presidente da Gerdau sendo conduzido a um interrogatório na foto estampada na capas dos jornais. A bunda das meninas choca mais que a organização político-social do Brasil, talvez até mais que o crescimento da onda de violência no Estado do Rio Grande do Sul, que no ano passado teve seu percentual de homicídios maior que o Rio de Janeiro e São Paulo.

Mas não é exatamente deste tipo de comparação que vim falar.

A questão é que as colegas que estavam conversando viram quando saí de dentro do box do banheiro e tascaram um “tu não acha, Carol”?

E eu respondi como sempre respondo quando quero me esquivar: “não, sei, cheguei lá e a velha já estava morta”. Não adiantou. Houve insistência. “É sério Carol! O que tu acha disto”?
O que eu acho? Eu acho que um vestido longo não evitou que um rapaz “esbarrasse” em mim na praça da Alfândega, no caminho para o trabalho e me levantasse do chão encaixando as mãos dele em minhas nádegas em direção da vulva (meu vestido longo também não evitou a surra que dei nele, mas este já é outro ponto).

E o fato de eu ensinar à minha filha que ela deve respeitar as regras da escola onde ela estuda e usar bermudas para ir à aula não evitou que um colega a trancasse no banheiro e abusasse dela, que conseguiu sair correndo e chamar um adulto. Respeitar normas é um questão que envolve até uma percepção de teorias da Psicologia. Possuímos em nossa identidade social diversas personas. Obviamente a Caroline esposa é diferente da Caroline profissional, que é diferente da religiosa, que é diferente da mãe.

A persona estudante da minha filha usa bermuda e camiseta para ir à escola. Mas isso não a protegeu de um abuso. E isto também não protegeu o menino de ter sido abusado em casa e refletir isto na escola. Fato que só ficou conhecido por que finquei pé na escola até que o Conselho Tutelar fosse chamado para investigar o que estava acontecendo (O menino ia ser expulso sem ninguém saber o motivo de seu comportamento – fácil, não?).

E voltando às meninas do Anchieta: a persona estudante delas seja lá como estiverem vestidas não impediu que passassem por uma inspeção diária em plena exposição diante de todos na escola. O que é degradante de qualquer maneira.

Sendo assim, por que se preocupar tanto com um short, sendo que o problema é bem maior que isto?
Silêncio no banheiro.

Retorno ao meu posto de trabalho. Encaro uma colega que com delicadeza diz: “tu viu esta história do Anchieta? Não sei se sou quadrada ou não, mas acho que elas estão erradas”.
Então respondo tão delicadamente quanto: “Tu não és quadrada. É só tua opinião. Mas veja bem: trabalhamos em uma empresa com cento e vinte anos de mercado. E hoje vim até aqui com um vestido com barra um pouco abaixo dos meus joelhos. Tu achas apropriado”?

“Acho”.

“E se eu viesse vestida assim neste mesmo prédio em 1910”?

Silêncio na sala.

Precisamos do barulho destas meninas do Anchieta. Mas precisamos deste silêncio reflexivo também.
Estamos passando por um período de transição. Chanel usou calças quando isto era um escândalo.
Não podemos fechar os olhos e julgar como errado o comportamento destas meninas, quando na verdade está tudo errado. O ser humano deve respeitar o espaço do outro independente do gênero com o qual nasceu.

Enfim, esta transição é inevitável. Só precisamos que ela ocorra de maneira saudável.


Foto compartilhada pelo site Catraca Livre.


*

3 comentários:

  1. Respostas
    1. Este comentário foi removido pelo autor.

      Excluir
    2. Que bom que gostou, Luciana. Acho que é pertinente termos um diálogo mais aberto a respeito de uma situação que está sendo escondida atrás de uma peça de roupa. Abraço!

      Excluir