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quinta-feira, 21 de abril de 2016

E foi sem cuspe mesmo

Escrevo este texto para amigos. Amigos que tenho visto compartilhando em redes sociais relatos de pessoas que passaram pelos horrores instituídos após o AI-5 ser sancionado no Brasil em 1968.

Amigos que tem exposto o relato sofrido (não tenho outra palavra) de Amelinha Teles. Tudo isto numa tentativa vã de conscientizar os outros sobre o quão absurdo é a opinião do Sr. Jair Bolsonaro. E já digo de antemão, meus amados: de nada adiantará, nem que a tortura em questão fosse infligida às mães deles. Se uma pessoa chega ao ponto de admirar alguém com este tipo de postura, teria ela o discernimento destas coisas?

Gostaria de dizer querido amigos, que me sinto sim desrespeitada quanto mulher ao saber que ainda existem pessoas que acreditam ser normal o que aconteceu durante um período tão sombrio de nossa história (e que diga-se de passagem não concordo em ser apagado de nossa memória nem com mudança em nomes de avenidas). Seja do lado que for.

Há anos atrás resolvi trabalhar em um monólogo que falava sobre um caso de Síndrome de Estocolmo que ocorria num cativeiro do exército em Porto Alegre durante a Ditadura Militar.
O texto nunca saiu do papel (quem sabe um dia). Mas para concebê-lo, fiz laboratórios me aproximando o máximo possível daquela realidade ouvindo e entendendo o que se passava na cabeça de pessoas envolvidas com aquela situação. Fui em busca de pessoa que tivessem em algum momento amado um torturador a serviço do Exército Brasileiro. E pasmem: encontrei tantas, que havia duas no mesmo bairro. E uma das coisas que mais me chocou foi o fato de saber que não precisava se estar em um porão para que aquela face do medo estivesse presente na vida delas.

Esposa de um militar, mãe de quatro filhos dele, Janete* fugiu do estado onde moravam. Ela assistiu o homem com quem trocou alianças apaixonadamente se transformar em um monstro que descrevia em minúcias as maiores atrocidades que ocorriam em seus plantões em uma das salas do DOI-CODI no Rio de Janeiro. Ela sabia estar deitada na cama ao lado de um homem que provavelmente algumas horas antes havia estuprado uma (ou um) estudante qualquer. E passou a abrir as pernas por medo. Até o dia em que ele olhou no fundo de seus olhos, ao ser contrariado em uma tarefa doméstica, e sussurrou por entre os dentes “subversiva”. Na primeira oportunidade pegou os filhos e veio para o Rio Grande do Sul. Nunca mais o viu. “Mas como, dona Janete? Como ele nunca a encontrou”? Eu perguntei. “Acho que foi milagre, minha filha”, ela respondeu com olhos de quem ainda lembra de cada cena.

Já Iracilde* me mostrou um outro lado. O seu esposo militar negou-se a torturar uma grávida, e ficou preso. E ela também, só que em casa. Com o único filho nos braços, na época com três meses. Me contou que ficavam dois soldados em sua porta. Por dias. Não podia sair nem para comprar comida. Um dia o bebê teve uma febre que não cedia. Iracilde gritava por socorro, pedia remédios, pedia compaixão. Em troca, o silêncio. A febre ficava cada vez mais alta. O bebê convulsionava. Ela não tinha mais como gritar, aquele silêncio iria matar seu filho. Colocou-o embaixo de uma torneira fria. Ele recobrava a consciência. Passou a noite inteira assim, alternando o banho frio com massagens para que o menino recobrasse a consciência. A criança está viva até hoje (é um grande amigo). Mas quando perguntei sobre o esposo, Iracilde pediu que, por favor, não a fizesse falar mais. Respeitei. Afinal tenho meus filhos.

Segui pesquisando, segui ouvindo, segui sentindo. E sem cuspe. Quando uma pessoa concorda em falar sobre isto não há suavidade, não há censura, não há cortes. Apenas dor.

Se acho que corremos o risco de vivermos novamente momentos como este? Não exatamente. Mas confesso que tenho pânico de mesmo sendo “bela, recatada e do lar”. Certa vez ouvi que se vivesse minha vida decentemente indo de casa ao trabalho e do trabalho para casa nunca correria risco nenhum e a única coisa que me veio à mente foi a imagem de Herzog: empregado, trabalhador, afamilhado. Não é de graça. O jornal onde hoje trabalho teve toda sua edição de 20/09/1972 recolhida, e em 18/04/2016 publicou uma foto do vice-presidente brasileiro rindo displicente na capa.

Se acredito que uma cusparada resolva tudo? Não. Mas nunca deixo de acreditar em justiça divina. E esta, meus amigos, sempre chega. De um jeito ou de outro.




*Nomes fictícios, para proteger a identidade dos envolvidos

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